Acórdão nº 9152/21.5T8LSB.L1-5 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-01-25

Ano2022
Número Acordão9152/21.5T8LSB.L1-5
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo e nº 9152/21.5T8LSB, que corre termos no Juiz 14 do Juízo Central Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi o arguido,
AM , …
condenado pela prática de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo art. 368º-A, nº 1 e 2 do Cód. Penal com referência ao crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art. 103º do Regime Geral das Infracções Tributárias, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
*
Sem se conformar com a condenação o arguido interpôs o presente recurso onde pede que a decisão recorrida seja substituída por outra que o absolva ou, a assim não se entender, que fixe a pena no seu limite mínimo e a suspenda a sua execução.
Para tanto formula as conclusões que se transcrevem:
1.º Interpõe-se recurso da decisão que condenou o arguido na pena de prisão de 2 (dois) anos de prisão, efetiva na sua execução, pela prática do crime de branqueamento, previsto e punível pelo disposto no artigo 368-A, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, com referência ao crime de fraude fiscal, previsto e punível pelo disposto no artigo 103 do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Em primeiro lugar,
2.º A decisão recorrida começa por anunciar que em sede de julgamento o Tribunal comunicou que o crime de branqueamento seria aferido, com base na factualidade imputada, com referência ao crime de fraude fiscal, p. e p. no art. 103.º do Regime Geral das Infrações Tributárias. Efetivamente, o Tribunal a quo fez a referida comunicação ao arguido, no decurso da audiência de julgamento (concretamente, na terceira sessão, realizada no dia 23.06.2021), mediante o seguinte despacho: (vide acta)
Ora,
3.º Elementar, na dogmática do crime de branqueamento previsto e punível pelo disposto no artigo 368º-A do Código Penal, é a sua dependência de um crime precedente (o predicate offense). Dito de outro modo: é punível pela prática do crime de branqueamento quem branqueara vantagem obtida através da prática, cronologicamente anterior, de um outro crime.
4.º Por esse crime anterior, o agente não tem que ter sido, nem tem que ser simultaneamente, condenado. Mas têm que ficar demonstrados (provados), no processo que tem como objeto os factos típicos do crime de branqueamento, os factos ilícitos típicos do crime de que proveio a vantagem branqueada. É o que, de resto, ressai com clareza do disposto no nº 1 do artigo 368º-A do Código Penal.
5.º O crime de fraude fiscal é um dos crimes cujos factos típicos, se verificados e geradores de uma vantagem, pode preceder o crime de branqueamento.
É evidente, pois, que,
6.º Na acusação ou, havendo lugar à fase de instrução, no despacho de pronúncia - atos processuais onde se define e fixa o objeto do processo - que imputa a alguém a prática do crime de branqueamento, tem que estar identificado o crime precedente e têm que estar descritos e concretizados todos os respetivos factos típicos.
7.º O objeto do julgamento serão, pois, tanto os factos relativos à dissimulação (os atos de branqueamento) da origem ilícita da vantagem, como os factos relativos à própria origem ilícita (como seja a fraude fiscal) da vantagem, impondo-se que, todos eles, se encontrem devidamente descritos na acusação ou no despacho de pronúncia.
Acontece que,
8.º In casu, tendo havido lugar a instrução, o despacho de pronúncia não continha a descrição dos factos ilícitos típicos do crime precedente (fraude fiscal, previstos no artigo 103 do RGIT.
9.º Com efeito, não se concretizou (i) se o arguido pretendia não liquidar, não entregar ou não pagar uma prestação pecuniária (e, já agora, qual prestação pecuniária?!) ou obter indevidamente um benefício fiscal, um reembolso ou outra vantagem patrimonial suscetível de causar diminuição das receitas tributárias (e, já agora, de que receitas estaríamos a falar e de que valor?!), nem se se concretizou (ii) se o arguido ocultou ou alterou factos ou valores que devessem constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalizasse, determinasse, avaliasse ou controlasse a matéria coletável, ou se ocultou factos ou valores não declarados e que devessem ser revelados à administração tributária, ou se celebrou negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
10.º Com efeito, quando é que o recorrente auferiu, e de que fonte exata, rendimentos, ou património, quando é que tinha que os declarar, em que sede, de que modo, sujeito a que taxas, e quanto é que não pagou de imposto, são elementos que não constam do despacho de pronúncia.
Ou seja,
11.º Do crime de fraude fiscal, a pronúncia bastou-se com a sugestão genérica de que o arguido o cometera. E mais não disse. Simplesmente, não se descreveram, na pronúncia, os factos típicos do crime de fraude fiscal.
12.º A pronúncia (assim como a decisão recorrida) partem do princípio, que se encontra adquirido "por cheiro" que o arguido omitiu a declaração do dinheiro que tinha na Suíça. No entanto, não há uma única referência à natureza ou melhor, proveniência, de tal dinheiro, a que respeitava, para que se possa, sequer, concluir pela obrigação de proceder à sua declaração junto da fazenda. Diz-se que o arguido omitiu a declaração de tal montante, mas não se diz, muito menos se demonstra, porque é que o arguido estava obrigado a declarar tal montante. Acontece que, ter dinheiro na Suíça que não foi declarado fiscalmente não é sinónimo de ter omitido qualquer obrigação declarativa. Para que tal ocorra míster é que tal dinheiro seja rendimento sujeito a declaração.
13.º Aliás, a omissão da pronúncia é tão flagrante que, querendo porventura o arguido beneficiar da atenuação especial da pena prevista nos nºs 9 e 10 do artigo 368º-A do Código Penal, através da reparação integral ou parcial do dano causado, disso se viu impedido, uma vez que no despacho de pronúncia não se quantificou o dano causado. Que é o mesmo que dizer que não se materializou o objeto do crime de branqueamento, nem ficou provado que o crime de fraude fiscal foi cometido antes do crime de branqueamento de modo a poder servir-lhe de crime precedente...
14.º Tal como se vedou ao arguido a possibilidade de beneficiar da atenuação especial da pena prevista nos nºs 9 e 10 do artigo 368º-A do Código Penal, através da reparação parcial ou integral do dano causado, o que constitui uma violação do direito de defesa que não pode deixar de, só por si, acarretar a nulidade da pronúncia.
Constata-se, pois, que,
15.º A pronúncia era (é) nula. Mas, não tendo sido rejeitada aquando do saneamento do processo, a sua ineptidão apenas podia ter conduzido à decisão, do Tribunal a quo, de a julgar (manifestamente) improcedente.
Não tendo sido esse o caminho (lógico) percorrido,
16.º O Tribunal a quo, ao condenar por factos, não descritos na pronúncia, respeitantes ao crime de fraude fiscal, proferiu uma decisão nula, nos termos e do disposto no artigo 379º, nº 1, alínea b), nulidade que aqui se expressamente se argui, devendo da mesma serem retiradas todas as consequências legais.
17.º É nula a decisão que condene pela prática do crime de branqueamento sem que a pronúncia contenha os elementos constitutivos do crime precedente e a determinação concreta da vantagem desse crime que constitui o objeto do crime de branqueamento, desde logo por, dessa forma, resultarem violados os direitos de defesa do arguido, seja por cerceamento do exercício do contraditório respeitante aos factos do crime precedente seja por lhe vedar a possibilidade de reparação do dano e, assim, usufruir da atenuação da pena.
18.º Os artigos 368º-A, nºs 1, 3, 4, 9, 10, 11 e 12 do Código Penal e os artigos 283º, 308º e 379º do Código de Processo Penal são materialmente inconstitucionais quando interpretados no sentido de que o julgamento e a condenação pelo crime de branqueamento de capitais pode ocorrer sem que na acusação/pronúncia se descrevam e provem os factos relativos ao crime precedente e se identifique a vantagem do crime que serve de objeto do crime de branqueamento, nomeadamente, quando o crime precedente seja o crime de fraude fiscal, não se descrevam, entre outros, a origem dos montantes não declarados à Fazenda e, portanto, a natureza do imposto em falta, o momento em que os mesmos foram obtidos e, portanto, o montante do imposto devido e não pago, por violação do principio da legalidade e do direito de defesa, ínsitos nos artigos 2º, 18º, nº 2, 20º, 29º e 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito,
19.º Da decisão recorrida resulta uma dimensão normativa clara: a de que pode ser julgado e condenado pela prática do crime de branqueamento de capitais a pessoa que detiver dinheiro (pelo menos no estrangeiro) que não declarou às autoridades fiscais, independentemente de se saber qual a fonte desse dinheiro e, portanto, a determinação da obrigação declarativa, ou o imposto omitido e, tão pouco, o momento da sua obtenção e o montante do imposto devido. Ora, não só a letra da lei não autoriza tal dimensão, como, a verificar-se tal hipótese, haveria uma ofensa inaceitável do direito de defesa do arguido.
De resto,
20.º Ao comunicar ao arguido que consideraria, como crime precedente, o crime de fraude fiscal, p. e p. pelo disposto no artigo 103º do RGIT, o Tribunal a quo introduziu no objeto do processo os respetivos factos típicos, na medida em que, avaliando-se desde logo pelo resultado (a condenação), considerou provada a fraude fiscal.
Acontece que,
21.º Para além de, como vimos de observar, a condenação assentar em factos diversos dos descritos na pronúncia, com a sua consequente nulidade, rigorosamente, e em termos práticos, essa introdução dos factos típicos
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