Acórdão nº 90/21.2GCSCD.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 07-02-2024

Data de Julgamento07 Fevereiro 2024
Ano2024
Número Acordão90/21.2GCSCD.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (VISEU (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE VISEU – J1))

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RELATÓRIO


No processo comum singular n.º 90/21...., que pende no Juízo de Instrução Criminal de Viseu – J...., foi a 13.9.2023 proferido o seguinte despacho (transcrição):

AA veio requerer a sua constituição como assistente.

A factualidade pela qual pretende essa constituição como assistente é suscetível, em abstrato, de integrar a prática por parte do arguido de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p.p artigo 291 do CP.

O citado ilícito insere-se no capítulo dos crimes contra a segurança das comunicações.

O interesse protegido neste tipo de crimes é, em primeira linha, a segurança do tráfego rodoviário.

Logo, o interesse protegido é, assim, o interesse público do Estado e não qualquer interesse particular.

Ora, de acordo com o art.º 68º do CPP:

“1- Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:

a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;

b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;

c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adotados, ascendentes e adotantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;

d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de proteção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime;

e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção”.

Não é ofendido para efeitos de constituição como assistente, qualquer pessoa prejudicada com o crime, mas somente o titular do interesse protegido com a incriminação.

Em nosso entender, o crime de condução perigosa não admite a constituição de assistente, uma vez que o interesse protegido é o interesse público do Estado.

Estamos perante um crime de natureza publica em que o requerente não é o titular do bem jurídico protegido, não tendo a qualidade de ofendido para efeitos de constituição de assistente (neste sentido ao ac. da RG de 16.1.2006)

Também não estamos perante um dos crimes a que alude o artigo 68, nº1, al.e) do CPP.

Pelo exposto, não se admite o requerente a intervir nestes autos como assistente, por falta de legitimidade.


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Recurso de AA (conclusão única que se transcreve integralmente):

Ao contrário do aqui decidido, o recorrente, face aos concretos factos (indícios) em causa nos autos, e independentemente da incriminação que se lhes possa vir a dar, é efetivamente ofendido, e deveria ter sido admitido como assistente, tendo o despacho recorrido violado o artigo 68.º, n.º 1 alínea a) do CPP.


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Respondeu o Ministério Público, pugnando pela procedência do recurso interposto, rematando com as seguintes conclusões.

1- No crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, o bem jurídico protegido é a segurança das comunicações, mas também a vida e a integridade física, bem como bens patrimoniais de valor elevado, através da prevenção de situações de perigo concreto.
2- A noção de «interesses» abrange também direitos pessoais, relativamente a cada crime pode haver vários interesses ofendidos e quanto a este concreto crime previsto e punido pelo art. 291º, nº. 1, alínea b), do Código Penal, o bem jurídico protegido é a segurança das comunicações mas também a vida e a integridade física, bem como bens patrimoniais de valor elevado, sendo que sem a criação de um concreto perigo para pelo menos um de tais bens o crime não é preenchido e o bem jurídico «segurança das comunicações» não é protegido pela incriminação.
3- O legislador penal ao utilizar o vocábulo «especialmente» no art. 68º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, fê-lo no sentido de «particularmente» e não já com o sentido de «exclusivamente», acontecendo que o interesse que permite assumir a qualidade de ofendido tem que ser um (ou um dos) interesses especialmente protegidos com a incriminação.
4- «A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime concreto que estiver em causa e a delimitação do conceito relevante de “ofendido” encontrar-se-á no limite, na interpretação do tipo de crime, para determinar caso a caso se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a verificação da natureza pública ou não pública do crime.» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência número 7/2011, de 27/04/2011.
5- «O que interessa é saber se o dano no bem jurídico público tem igualmente repercussão nas férias jurídica individual e se, desta forma, a norma incriminadora visa tutelar, ainda que mediatamente, bens jurídicos pessoais». (Frederico Lacerda da Costa Pinto, in O Estatuto do lesado no processo penal, 2001. Páginas 699/700).
6- «(…) Assim, por exemplo, têm legitimidade para se constituírem assistentes: (…) n. as pessoas que tenham sido colocadas em perigo ou cujos bens tenham sido colocados em perigo aquando da prática de um crime de perigo comum, uma vez que a norma visou proteger especialmente estas pessoas e estes bens patrimoniais de tal maneira que antecipou a tutela penal para a fase de perigo…». – cfr. Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, volume II, 5ª edição, página 283, ponto 3, alínea n., obra organizada por Paulo Pinto de Albuquerque.
7- Tendo havido um concreto perigo para a vida ou a integridade física de outra por qualquer uma das condutas previstas na alínea b) do n.º 1 do art. 291º do Código Penal, não se vislumbra, salvo melhor parecer, fundamento jurídico para julgar como não tendo o mesmo legitimidade para se constituir assistente nos autos.
8- Salvo melhor parecer outro despacho recorrido violou o disposto no art. 61º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e interpretou também erroneamente o art. 291º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, quanto à natureza e amplitude dos bens jurídicos protegidos, restringindo tal bem à segurança das comunicações e não considerando no âmbito dos bens jurídicos protegidos também a vida, a integridade física e bens patrimoniais alheios de valor elevado.
9- Daí que, face a todo o exposto, o douto despacho recorrido que deva ser revogado e substituído por outro que admita o recorrente a requerer a sua constituição como assistente nos autos e a constituir-se como tal nos autos, reunidos que estejam os demais pressupostos legais.
10- Assim, revogando o outro espaço recorrido, nos termos e para os fins expostos, farão Vossas Excelências, como sempre e mais uma vez, Justiça.


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Respondeu ainda o arguido BB, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

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No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador-geral Adjunto pronunciou-se da seguinte forma:

«Visto o alegado em tal recurso, considera-se dever merecer provimento a pretensão aí formulada, desde
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