Acórdão nº 77/20.2GAVFR.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2023-06-14

Ano2023
Número Acordão77/20.2GAVFR.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. nº 77/20.2GAVFR.P1
Recurso Penal
Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2


Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.


I. Relatório
No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 77/20.2GAVFR, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo, a final, sido proferida sentença, datada de 27/12/2022, com o seguinte dispositivo:
«Nos termos supra expostos, decido:
1º). Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão.
2º). Suspender a pena de prisão ora aplicada, pelo período de um ano, condicionada ao cumprimento dos seguintes deveres e regras de conduta:
- entregar, no prazo de um ano, a quantia de €1.000 (mil euros) ao Centro Social ..., comprovando documentalmente nos autos o cumprimento de tal obrigação;
- frequentar um curso de prevenção rodoviária, a suas expensas, comprovando documentalmente nos autos o seu cumprimento;
- comunicar ao Tribunal a alteração de residência e requerer autorização para ausência para o estrangeiro;
- a obrigação de se apresentar, quando convocado, a este Tribunal.
3º). Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 (oito) meses – artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
4º). Condenar o arguido nas custas criminais do processo – artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
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Notifique e deposite.
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Notifique, sendo, quanto ao arguido, com a expressa advertência de que deverá proceder à entrega da respetiva carta de condução e de todos os títulos de condução na secretaria deste Tribunal ou no posto policial da sua área de residência, no prazo de 10 dias, após trânsito em julgado da presente sentença, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência – 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. […]»

Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]:
«A) Pelos factos e fundamentos alegados em 3. a 30., do presente Recurso, deve a matéria de facto ser julgada ferida de vício grave, por manifesto erro notório na apreciação da prova, devendo ser alterada no sentido de ser consagrado para efeitos de diminuição da eventual culpa do recorrente, julgando da concorrência de culpa da própria vítima e, as concretas e reais condições da ocorrência do evento tudo conforme toda a prova fixada nos presentes autos, ou em alternativa, pede-se a sua anulação em 1ª instância e a repetição do Julgamento, nos termos do disposto no artigo 426º do Código de Processo Penal.
B) Pelos factos e fundamentos alegados em 31. A 55., desta peça processual, por absoluta inexistência de nexo de causalidade entre o comportamento ou ação do recorrente nos factos “sub judice” e o decesso da vítima, ser julgado não provado o crime pelo qual este vem acusado, nos termos do artigo 137º, nº 1 do Código Penal e, em consequência, ser o recorrente Absolvido.
Sem Prescindir, sempre,
C) Pelos factos e fundamentos alegados em 56. a 86., do presente Recurso, deve em concreto as penas principal e acessória aplicadas ao recorrente serem alteradas, devendo ser fixadas nos seus limites mínimos, não mais de 3 meses, nos termos do disposto nos artigos 137º, nº e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, totalmente de acordo com os princípios gerais do nosso ordenamento jurídico penal, nomeadamente os artigos 40º, 43º, 50º, 51º, 52º, 65º, 70º, 71º, 72º, 73º, todos do Código Penal e, os princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico e consagrados na Constituição da República Portuguesa, nos seus artigos 30º, 58º, 64º, 65º e 67º.
V. Exas., Farão a Prudente e Sábia, JUSTIÇA.»
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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a manutenção da sentença recorrida, por considerar que a mesma não padece de qualquer vício (designadamente, o invocado erro notório na apreciação da prova), encontrando-se verificado o nexo de causalidade entre o comportamento negligente do recorrente e o resultado (morte da vítima), para além de se mostrarem criteriosamente fixadas as penas principal e acessória.
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A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso e confirmação da sentença recorrida, salientando, quanto ao mérito do recurso, a inexistência dos vícios decisórios invocados pelo recorrente, a inexistência de quebra do nexo causal invocada no recurso e a adequada dosimetria das penas principal e acessória determinadas pelo tribunal de primeira instância.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta pelo recorrente.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417º, nº 3, do PP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410º, nº 2 ou o art.º 379º, nº 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1) Vícios decisórios – em particular, a questão do «erro notório na apreciação da prova» (art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP).
2) Questão da verificação do nexo de causalidade adequada entre o comportamento do recorrente e a morte da vítima.
3) Escolha da pena principal (multa ou prisão).
4) Dosimetria das penas principal e acessória (de proibição de conduzir).
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.
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Factos provados e não provados (segue transcrição):
«FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto provada
Da audiência de julgamento resultou provada a seguinte matéria de facto:
Da acusação pública
a). No dia 31 de Janeiro de 2020, cerca das 11:45 horas, na Rua ..., em ..., Concelho ..., o arguido AA conduzia o veículo automóvel pesado de mercadorias, da marca Renault, com a matrícula ..-JM-.., no sentido de marcha .../....
b). Naquele momento, na via de trânsito de sentido oposto àquele em que seguia o arguido, circulava a BB, ao volante do veículo automóvel da marca Mercedes, modelo ..., com a matrícula ..-..-NP, na direção .../....
c). BB transportava consigo, no veículo de matrícula ..-..-NP, no lugar de passageiro da frente, CC.
d). Em frente à habitação com o n.º de porta ... da via acima identificada, a faixa de rodagem tinha a configuração de uma curva à esquerda atento o sentido de marcha em que circulava o arguido.
e). Aí chegado, o arguido ao efetuar a referida curva, invadiu a via de trânsito de sentido oposto e, em consequência, colidiu com o veículo de matrícula ..-JM-.. que conduzia na parte frontal e lateral esquerda do veículo automóvel de matrícula ..-..-NP, onde seguiam BB e CC.
f). Como consequência direta da colisão provocada pelo arguido, CC sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e vertebro-medulares cervicais, que foram causa direta e necessária da sua morte.
g). O embate ocorreu dentro da via de trânsito em que seguia o veículo automóvel de matrícula ..-..-NP, conduzido por BB.
h). O local onde ocorreu o acidente configurava uma curva com inclinação aproximada de 3%, ascendente no sentido de circulação do arguido.
i). A faixa de rodagem tinha uma largura de 5,70 metros, era constituída por duas vias de trânsito, uma em cada sentido, delimitadas por uma linha contínua de cor branca, encontrando-se a mesma bem visível.
j). A via encontrava-se em bom estado de conservação e o piso estava molhado, porque chovia, embora com pouca intensidade.
k). O arguido ao conduzir do modo acima descrito, efetuando uma curva com um veículo pesado de mercadorias e invadindo a via de trânsito oposta ao seu sentido de marcha e por onde estava a circular o veículo de matrícula ..-..-NP, transportando CC, colidindo com aquele automóvel, agiu com uma total falta de consideração, atenção, zelo e de cuidado, que era capaz de adotar e que devia ter adotado para evitar um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, dando, pois, causa ao acidente, de onde resultariam lesões corporais que vieram a provocar a morte de CC.
l). O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
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Mais se provou, com relevância para a determinação da sanção aplicável:
m). No circunstancialismo supra descrito, a vítima mortal, CC, circulava sem cinto de segurança.
n). À data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais e não lhe eram conhecidos antecedentes contra-ordenacionais de natureza estradal.
o). O arguido tem o 6.º ano de escolaridade e é motorista profissional, na sociedade “A..., Lda.”, há dezanove anos, auferindo cerca de €800 mensais.
p). Vive com a sua mulher, tendo o casal um filho de vinte e cinco anos de idade, o qual já desempenha atividade profissional e contribui para as despesas domésticas (pagando o fornecimento da água e da eletricidade).
q). A sua mulher encontra-se reformada, por invalidez, há sensivelmente vinte anos, beneficiando de uma pensão de cerca de €300 mensais.
r). O agregado familiar reside em casa arrendada,
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