Acórdão nº 72/23.0GAMGR.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2024-03-06

Ano2024
Número Acordão72/23.0GAMGR.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J1))


Relatora: Cristina Branco
1.º Adjunto: João Novais
2.º Adjunto: Pedro Lima

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Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Nos autos com o n.º 72/23.0GAMGR, findo o inquérito, que correu termos na Procuradoria da República da Comarca de Leiria, Departamento de Investigação e Acção Penal - Secção da Marinha Grande, o Ministério Público deduziu contra o arguido AA, melhor identificado nos autos, a acusação com a referência Citius 104029803, imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do CP.

2. Remetidos os autos à distribuição como instrução, pelo Senhor Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz ..., foi proferido despacho no qual decidiu declarar extinto o procedimento criminal, por amnistia, e determinar o oportuno arquivamento dos autos.

3. Não se conformando com tal decisão, interpôs o Ministério Público o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
« - Em 09.10.2023 o Juiz de Instrução Criminal exarou despacho, declarando extinto o procedimento criminal por amnistia, no que concerne ao crime previsto e punido pelo art.º 292º do C. Penal. A nossa discordância e, portanto, a razão do presente recurso, prende-se com o despacho supramencionado.
- No nº1 do artigo 7º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto mostra-se expresso que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei (além do mais) os condenados por crimes de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal. Dispõe, por sua vez, o nº3 deste art.º 7º que a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.
- Considerando que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e sendo que a interpretação da lei é construída a partir do texto certo é que, se fosse intenção daquele restringir as exceções do art.º 7º à situação do perdão, certamente que não teria aposto a palavra “amnistia” na mencionada disposição legal.
- E porque entenderia o legislador que determinados crimes podiam/deviam ser suscetíveis de aplicação da amnistia, mas (por razões incompreensíveis) não seriam suscetíveis da aplicação do perdão? Cremos mostrar-se ilógico que o legislador tenha afastado do perdão crimes cometidos sob a influência do álcool e, por outro lado, considerado amnistiado tais ilícitos criminais.
- Mais se questiona o seguinte: aderindo à posição de que o referido ilícito criminal - crime de condução de veículo em estado de embriaguez - seria suscetível da aplicação da amnistia, atento o preceituado o nº1 do artigo 69º do C. Penal, subsiste a proibição de conduzir veículos com motor ? Ou as sanções acessórias dos crimes encontram-se igualmente abrangidas, i. é, são abrangidas as consequências que a prática do crime desencadeia (pena principal, penas acessórias, medidas de segurança, efeitos das penas, responsabilidade civil)?
- Estando a condução sob a influência do álcool nesta última situação, pois além da multa é punível também com proibição da faculdade de conduzir, é evidente que, se o legislador tivesse querido amnistiar o ilícito em causa, teria de identificá-lo pela sanção mista que lhe corresponde.
- Neste particular salienta-se o nº2 do artigo 2º, da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto, que descreve que “Estão igualmente abrangidas pela presente lei: a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;”. Há ainda, neste contexto, que atender à redação do artigo 5º do aludido diploma, o qual apenas faz menção às contraordenações.
- Assinala-se que dos trabalhos preparatórios que deram origem à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, conclui-se, em nosso entender, ter sido intenção do legislador excluir determinados ilícitos criminais (os enunciando no artigo 7º) não só da aplicação do perdão, mas também da amnistia.
- A esta argumentação pode ainda acrescentar-se o teor dos debates dos grupos parlamentares em matéria de aprovação da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, bem como os pareceres do Conselho Superior da Magistratura e do Conselho Superior do Ministério Público e ainda a Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª
10º - Considerando que na determinação do sentido do diploma em causa a interpretação deve respeitar o pensamento legislativo, assentando este em primeira linha na letra da lei, e atender à unidade do sistema jurídico, às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo em que é aplicada, não olvidando que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, entendemos que da sua leitura extrai-se que o legislador teve a intenção concreta de excluir da amnistia (e do perdão) os crimes enunciados no artigo 7º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (cfr. artigos e 11º, do C.Civil, os quais surgem como limites na análise da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto).
11º - Por todo o exposto e salvo melhor opinião, cremos que deverá ser revogada a decisão ora recorrida, determinando-se a sua substituição por uma outra que não considere amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal e, em consequência, determine o prosseguimento dos autos, realizando-se o debate instrutório.
12º - Ao exarar o despacho colocado em crise o Mmº Juiz de Instrução Criminal violou os artigos 292º e 69º, ambos do C. Penal, os artigos 7º, nº1, al. d) ii) e nº3 da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto e o artigo 297º do C.P. Penal.
Porém, decidindo, V. Ex farão a costumada JUSTIÇA»

4. O recurso foi admitido, por despacho de 27-10-2023 (Ref. Citius 105229658).

5. O arguido não apresentou resposta ao recurso.

6. Foi proferido, em 15-01-2024, despacho de sustentação da decisão recorrida.

7. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref. Citius 11210834), no qual sufraga o teor da motivação apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância e se pronuncia pela procedência do recurso.

8. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.

9. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


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II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

In casu, a única questão que se suscita é a de saber se o procedimento criminal pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1, do CP, por quem, à data do cometimento dos factos, não tinha idade superior a 30 anos, deve ser extinto, por amnistia, por aplicação do art. 4.º da Lei n.º 38-A/23, de 02-08, por o arguido ainda não se encontrar condenado (por sentença transitada em julgado ou não), como se considerou no despacho recorrido, com a explicitação produzida no despacho de sustentação.


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2. Da decisão recorrida

É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):
«1. Autue-se como instrução.
2. Declaro extinto o procedimento criminal por amnistia, cfr. artigo 4º da Lei Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, e art. 128 n.º 2 do C.P., uma vez que AA nasceu a ../../1999, e o facto, subsumível ao crime previsto no art. 292 do C.P., e de que se mostra acusado, terá ocorrido a 19.2.2023, cfr. art. 2º do cit. diploma.
3. Notifique.
4. Oportunamente, arquive.»

Explicitando-se no despacho de sustentação (transcrição):

«(…) Li a motivação de recurso. Não me convenceu.
Enquanto a amnistia se dirige ao crime, apagando-o, esquecendo-o, extinguindo o procedimento criminal ou impedindo-o, o perdão incide na pena, a sanção, extinguindo-a no todo ou em parte.
A diferença está na retroactividade (da primeira).
No caso, a lei é clara em assinalar como excluídos da graça “condenados”, cfr. art. 7º n.º 1 d) ii) da Lei 38-A/2023. Condenados é o móbil deôntico de aplicação.
Quer dizer, a exclusão aplica-se aos que foram condenados mas que a condenação não transitou em julgado, bem como aqueles em que a condenação transitou.
É o que se retira da letra da lei, letra esta clara na sua aplicação como se fez.
Outro entendimento, é dizer o que o legislador não disse. E é este que tem o ónus de clareza, o que a nosso ver foi cumprido, ao tomarmos a decisão agora sob impugnação.
No caso, o arguido não foi sequer julgado. Não foi condenado. Logo aplica-se a norma identificada no despacho sob impugnação.
Mas V. Exas decidirão de melhor Justiça porque melhor Direito.»


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3. Da análise dos fundamentos do recurso

Como acima referimos, a única questão suscitada reconduz-se a saber se o procedimento criminal pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º, n.º 1, do CP, por quem, à data do cometimento dos factos, não tinha idade superior a 30 anos, deve ser extinto, por amnistia, por aplicação do art. 4.º da Lei n.º 38-A/23, de 02-08.

O Tribunal recorrido concluiu pela afirmativa, sustentando que a exclusão prevista no art. 7.º, n.º 1, al. d), ii), do mencionado diploma, apenas se refere aos que foram «condenados» (por sentença transitada em julgado ou não), não abrangendo os que, como o arguido nestes autos, se encontra acusado da prática daquele crime mas não foi ainda julgado, e muito menos condenado.

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