Acórdão nº 7044/20.4T9LSB.L1-5 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-06-27

Ano2023
Número Acordão7044/20.4T9LSB.L1-5
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. Na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público após o encerramento do inquérito instaurado na sequência de uma queixa contra A e B, melhor identificados nos autos, veio a assistente C requerer a abertura de instrução, com vista a obter a pronúncia daqueles, pela prática de um crime de violação de correspondência p. e p. pelo artigo 194.º, n.º3 do Código Penal, pelos factos que lhes imputa e descreve no requerimento de abertura da instrução.
2. Uma vez realizada a instrução foi proferida decisão instrutória de pronúncia de ambos os arguidos pelos factos e disposições legais constantes do requerimento de abertura da instrução, nos termos do artigo 307.º, n.º 1, segunda parte, do Código de Processo Penal.
3. Os arguidos interpuseram, em separado, recurso da decisão nos termos constantes da respectiva motivação junta aos autos, da qual extraem as seguintes conclusões:
3.1. Conclusões do recorrente A (transcrição)
a) Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória que pronunciou o arguido pela prática de um crime de violação de correspondência, p. p. pelo artigo 194.º/3 do CPP.
b) Reproduzimos hic et nunc toda a motivação do recurso interposto pelo arguido Dr. B na parte em que se aplicar.
c) Como bem fundamentou o MP no despacho de arquivamento, “...a privacidade da queixosa, depois de em múltiplos ações que a opõem ao irmão, e vice-versa, ter sido já exposto o documento, no que à divulgação do extrato em causa diz respeito – tendo inclusive o aqui arguido sido condenado pelo acesso à carta e pela primeira divulgação do conteúdo da mesma, o extrato bancário em causa - reporta-se agora a factos que, no contexto específico em que o extrato tem vindo depois a ser usado - no estrito âmbito de processos judiciais, cíveis, comerciais e criminais.”
d) “E uma vez que o conteúdo em causa deixou de ser privado, entendemos: que o denunciado não cometeu o crime que a queixosa pretende imputar-lhe pois não agiu de modo a ofender o bem jurídico protegido pela incriminação: a privacidade. O conteúdo deixou de ser privado há muito tempo.”
e) “Nem sequer foi publicamente divulgado, antes e apenas usado para fazer prova do que o aqui arguido entende ser uma apropriação ilegítima de determinada quantia de dinheiro pertencente à herança que é de ambos, ou a determinada sociedade que faz parte da referida herança materna de ambos.”
f) “A privacidade não pode servir de escudo para ocultar a prática de eventuais crimes, ao menos no entendimento do aqui denunciado, que suspeita de que a aqui denunciante se apropriou ilegitimamente de dinheiro da herança.”
g) A tutela concedida pelo artigo 194.º n.º 3 do Código Penal, não abrange - não pode -, as situações em que o objeto de ação, ou seja, o conteúdo (e denunciar judicialmente não é o mesmo que divulgar) revele a prática de crimes graves, como é o caso dos crimes de abuso de confiança qualificado, fraude fiscal qualificada, falsificação de documento e branqueamento de capitais e, eventualmente, associação criminosa.
h) A correspondência, uma vez aberta, e divulgado seu conteúdo, deixa de ser protegida ou incluída no artigo194.º n.º 3 do Código Penal, ou seja, a sua divulgação num processo judicial, ou até fora dele, deixa de ter relevância penal, posto que se trata de meros documentos cujo valor probatório é livremente apreciado pelo tribunal.
i) É inconstitucional, por violar o princípio da legalidade penal, previsto no artigo 29.º n.º 1 da Constituição, a norma constante no artigo 194.º n.º 3 do Código Penal na interpretação de que constitui objeto da ação a junção pelo advogado da parte de uma cópia de correspondência da contraparte já aberta e divulgada anteriormente por outro advogado e noutros processos judiciais.
j) Ressalta à saciedade que a junção de tais documentos/extratos no mencionado processo judicial teve a finalidade de provar o surgimento da alegada, mas, claramente, injustificada, aliás, ilícito-penal fortuna da senhora assistente C, salientando-se que só naqueles extratos evidenciada está a existência de, para quem não trabalha, uma absurdamente elevada quantia superior a 400.000,00€ num banco no Luxemburgo.
k) É inconstitucional, por violar os princípio do Estado de Direito e o de acesso à tutela jurisdicional efetiva e pronta, consignados nos artigos 18.º n.º 1 e 20.º n.º 1 e 4 da Constituição a norma extraída da conjugação do disposto no artigo 31.º n.º 1 alíneas b) e c) e artigo 194.º n.º 3 do Código Penal, na interpretação de que constitui crime a conduta do agente que, para prova de crimes praticados por outro, apresenta em processo judicial cópia de um requerimento, apresentado muito antes, por outro advogado e noutros processos, no qual se incluem extratos bancários do visado.
l) O autor de factos ilícitos, em especial se incorrer na eventual prática de crime, não pode esperar cobertura do Direito emanado do citado dispositivo legal, o qual tem em vista -e tão só - as situações - e não podem ser outras - em que o conteúdo protegido não indicia qualquer ilícito assim se inserindo na legítima esfera jurídica privada do protegido, ou seja, quem comete fatos ilícitos graves não pode reivindicar a mesma tutela de quem se conforma com o ordenamento jurídico.
m) Ademais, a correspondência, evidenciando a origem e detenção de dinheiros ilícitos, em montantes elevados, não integra o núcleo restrito rectius área nuclear, inviolável e intangível da vida íntima (que, como demonstramos ab ovo não é o mesmo que privacidade e não está aqui em causa), consagrado no artigo 32.º n.º 8 da Constituição.
n) Ainda assim, o direito à privacidade não é um valor absoluto, no confronto com a necessidade de restabelecimento da paz jurídica derivada da prática de crimes graves, ficando, consequentemente, exposta à devassa e inerente investigação processual, na constelação do artigo 18.º n.º 2 da Constituição,
o) “A protecção da palavra (por maioria de razão a proteção de correspondência) que consubstancia práticas criminosas ou da imagem que as retrata têm de ceder perante o interesse de protecção da vítima e a eficiência da justiça penal: A proteção acaba quando aquilo que se protege constitui a prática de um crime.” - Ac. do STJ de 28.09.2011.
p) É inconstitucional, por violar os princípio do Estado de Direito e o de acesso à tutela jurisdicional efetiva e pronta, consignados nos artigos 18.º n.º 1 e 20.º n.º 1 e 4 da Constituição, a norma extraída da conjugação do disposto nos artigo 34.º e 194.º n.º 3 do Código Penal, na interpretação de que não constitui estado de necessidade probatório a conduta do agente que, para prova de ter sido vítima do crime de abuso de confiança agravado, junta em processo judicial cópia de um requerimento, apresentado muito antes, por outro advogado e noutros processos, no qual se incluem extratos bancários do visado e presumível autor do referido crime de abuso de confiança agravado.
q) Tal como concluiu o MP, inexistem indícios suficientes para se extrair que é mais provável a condenação do arguido do que a sua absolvição, pelo que não deve ser pronunciado.
r) Para dizer ainda que são verdadeiros os números constantes no quadro resumo apresentado pelo Dr. B que demonstra que os valores constantes no extrato em causa, são uma muito pequena parcela do total do roubo que se vem consumando desde há 20 anos a esta parte e que ascendem nesta data ao valor apurado de €14.500.000,00.
s) Não se compreende, nesta data, a liberdade da senhora assistente, como não se compreende a existência deste processo muito menos se percebe o despacho de pronúncia.
t) A concluir para invocar que, na sequência da publicidade do processo 5390/17 e subsequente autorização do JIC, os referidos extratos – e muitos, mesmo muitos, outros - são de tal forma públicos que estão na posse de vários jornalistas que já publicaram um trabalho sobre o caso (Revista Visão) e há um canal de televisão que se prepara para noticiar o caso minuciosamente, dada a perplexidade de como é que a senhora sem trabalhar há mais de 20 anos conseguiu dar semelhante golpe e ainda não ter prestado contas à justiça, tratando-se, pois, de uma questão de extrema relevância social o estudo e conhecimento dos contornos de como é que é possível isto acontecer no século XXI.
3.1. Conclusões do recorrente B (transcrição)
a) Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória que, ao contrário do MP, decidiu pronunciar o arguido pela prática de um crime de violação de correspondência p. p. pelo artigo 194.º/3 do Código Penal.
b) Desde logo, para sublinhar que a vítima aqui é o arguido e a Sociedade e não a assistente que nos últimos 19 anos mais não fez do que enveredar por uma carreira criminosa muito triunfante, onde, abusando do cargo de cabeça-de-casal, que a lei lhe deferiu e lesando o arguido/recorrente A e o Estado, se apropriou de um valor superior a 14.000.000,00€ (catorze milhões de euros), não pagou impostos, branqueou tais quantias em vários bancos e em forjadas ou falsas compras judiciais e, pelo caminho, burlou tribunais e corrompeu agentes de execução.
c) Isto é tanto assim que o processo 5390/17 onde a assistente está a ser investigada por tais crimes conta já mais de 40 volumes e 25 000 páginas e anexos e o senhor JIC, que não tem mãos a medir, perde-se na imensidão de trabalho do seu juízo, sendo esta a única razão, estamos em crer, porque a senhora ainda está em liberdade e continua usando os ardis judiciais – como o dos autos - para entorpecer e inviabilizar a ação desta justiça que, para desespero das vítimas e incredulidade e descrença da Sociedade, tarda a ser feita.
d) Note-se ainda que tais extratos estão juntos pelo próprio Banco no processo 5390/17 na sequências das diligências de instrução ordenadas pelo juiz de instrução, constando ainda um
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