Acórdão nº 668/21.4KRLSB.L1-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-03-09

Ano2023
Número Acordão668/21.4KRLSB.L1-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
No âmbito do Processo comum singular com o n.º 668/21.4KRLSB.L1 a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 1 - foi julgado e absolvido o arguido A por sentença de 30.6.2022.
Desta decisão veio o MºPº interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 149 a 154 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das conclusões seguintes:
“1. O presente recurso tem por objeto a douta sentença que absolveu o arguido pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido nos termos do artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal por não preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime.
2. A Mma. Juiz a quo considerou como facto provado que “Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que aquela não era já a sua habitação, e que não tinha consentimento de qualquer um dos respetivos moradores, mormente de B, para ali entrar em tais circunstâncias, o arguido, prevalecendo-se de o portão da propriedade não estar ainda fechado, usou tal ponto de acesso para atravessar o mesmo.”
3. Mais considerou como facto não provado que “5. Agiu o arguido com o propósito logrado de se introduzir no domicílio da ofendida B, embora bem soubesse que assim procedia contra a vontade e sem o consentimento da ofendida, e que a tanto não lhe assistia direito, por aquela já não ser a sua habitação, persistindo em permanecer naquele local mesmo após vários pedidos da ofendida para que dali saísse.
4. Mais considerou como não provado que 6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.”
5. Entende o Ministério Público que se verifica no caso dos autos uma contradição entre os factos provados, nomeadamente o n.º 7, e os factos não provados, nomeadamente o n.º 5 e o 6 e a douta decisão, verificando-se, assim, uma contradição insanável entre a decisão e a fundamentação nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal.
6. Estipula o artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal que “Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias”.
7. O segmento final do facto dado como provado e suprarreferido, integra, por si só o elemento objetivo do tipo de crime de violação de domicílio, nomeadamente a primeira parte do n.º 1 do artigo 190.º, ou seja, “Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa”.
8. Ora, na decisão a Mma. Juiz a quo afirmou que não se tem por preenchido o elemento objetivo, o que salvo o devido respeito, não se entende.
9. Não só tal facto foi tido por provado, como na fundamentação da decisão não se faz apelo ou se justifica tal entendimento.
10. Quanto ao elemento subjetivo do ilícito em apreço considerou como facto provado a Mma. Juiz a quo que: “Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que aquela não era já a sua habitação, e que não tinha consentimento de qualquer um dos respetivos moradores, mormente de B, para ali entrar em tais circunstâncias, o arguido, prevalecendo-se de o portão da propriedade não estar ainda fechado, usou tal ponto de acesso para atravessar o mesmo”
11. E como não provado que “5. Agiu o arguido com o propósito logrado de se introduzir no domicílio da ofendida B, embora bem soubesse que assim procedia contra a vontade e sem o consentimento da ofendida, e que a tanto não lhe assistia direito, por aquela já não ser a sua habitação, persistindo em permanecer naquele local mesmo após vários pedidos da ofendida para que dali saísse.
12. Na fundamentação da douta sentença a Mma Juiz a quo mencionou que “O que decorre da prova produzida é que existe entre arguido e queixosa um conflito latente relativo aos filhos de ambos”.
13. Ora, são diversas as espécies de dolo previstas nos vários números do art.º 13.º do Código Penal: dolo direto (em que o agente tem a intenção de realizar o facto criminoso), o dolo necessário (quando o agente não quer o facto, mas prevê-o como consequência necessária da sua conduta) e o dolo eventual (quando o agente prevê o facto como consequência possível, conformando-se com o resultado)”.
14. Atente-se que mesmo que se entendesse que o arguido agiu com o propósito de ver os filhos e não com o propósito de se introduziu no domicílio da ofendida, em boa verdade, atendendo a que os filhos do arguido se encontravam no interior da habitação (sentido lato, incluído o logradouro) o mesmo sempre teria de prever como necessária a violação do domicílio daqueles, pelo que sempre se teria por preenchido o dolo nomeadamente necessário.
15. Reitera-se que no caso dos autos a Mma. Juiz a quo ao ter dado como provado que o arguido sabia que não tinha autorização para entrar na habitação e mesmo assim entrou, não poderia dar como não provado a intenção do arguido em nela entrar.
16. O dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos.
17. A nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, deduz-se dos factos externos, objetivos, sob pena de nunca estar preenchido o tipo de crime pelo qual se pretende levar o arguido a julgamento.
18. A Mma. Juiz a quo deu como não provado que “6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.”
19. Quanto à consciência da ilicitude importa referir que no caso dos autos não estamos perante um crime com pouca relevância axiológica como o arguido se apresenta titular de um grau académico de mestre pelo que não se pode concluir que o mesmo não tenha consciência da ilicitude do seu comportamento e que tal conduta era proibida por lei.
20. Ao absolver o arguido pela prática do crime pelo qual vinha acusado dando como provados e não provados os factos suprarreferidos, o tribunal a quo incorreu numa contradição insanável entre a fundamentação e a decisão nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal.
21. Impõe-se como solução justa uma sentença de condenação.
22. Por tudo o exposto, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, tendo em conta os factos nela dados como provados e a sua contradição com os não provados, condene o arguido de acordo com o acabado de explanar e, concretamente, pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido nos termos do artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal.
Termos em que revogando a douta sentença recorrida, V. Ex.ª farão, na opinião da recorrente, como sempre a habitual e costumada JUSTIÇA!”
***
O arguido A respondeu a fls. 156 a 161 dos autos ao recurso, sem apresentar conclusões e nos seguintes termos:
“Provou-se tão-só, tal como consta na douta Sentença revidenda, que o Arguido passou o portão que separa a via pública da propriedade que constitui a residência onde habita a sua ex-mulher e os seus filhos, aproveitando-se de o portão da propriedade não estará ainda fechado.
Assim, tendo presente o supra exposto, e no seu confronto com a factualidade provada, importa desde logo concluir que a conduta do Arguido não preenche nenhum dos elementos do tipo base do crime de violação de domicílio, posto que, conforme resulta da matéria factual provada, nunca se introduziu na habitação da Queixosa, limitando-se a passar o portão que separa a habitação da via pública.
Conclui-se, deste modo, que a douta sentença não incorre em qualquer contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, designadamente entre os factos provados, nomeadamente o n.º 7, e os factos não provados, nomeadamente os n.ºs 5 e 6 da douta Sentença, devendo a mesma ser confirmada.”
***
Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra a fls.165 dos autos, pugna pela procedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais de relevante veio a ser acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e por despacho de 29.1.2023, que aqui se dá por reproduzido, foi determinado pela relatora deste processo o cumprimento do disposto no art.º 424º, n.º 3 do CPP em relação ao arguido.
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
***
II- Fundamentação:
Fundamentação de facto
São os seguintes os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal de 1.ª Instância e ainda a respectiva motivação de facto:
“1. O arguido e a ofendida B casaram um com o outro em 10 de Novembro de 2001, vínculo dissolvido por divórcio em 3 de Maio de 2018.
2. O arguido e B são progenitores comuns de C, nascido em 28 de Fevereiro de 2005, e de D, nascida em 30 de Janeiro de 2012.
3. Por sentença de 20 de Setembro de 2018, foi homologado acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais pertinentes a D e seu irmão C, ficando os mesmos a residir com B, mãe de ambos.
4. Em data não concretamente apurada, mas anterior à dos factos em causa nos autos, o arguido deixou de viver no até então domicílio comum e casa de morada de família, sito na Rua E, em Lisboa, não mais ali habitando, aí permanecendo a residir a vítima B, na companhia dos filhos comuns.
5. No dia 13 de Janeiro de 2021, pelas 18H30, tripulando seu veículo automóvel, e fazendo-se acompanhar de seus filhos ..., a ofendida B abeirou-se de sua casa, sita na Rua E, em Lisboa.
6. B abriu então o portão do muro delimitador do imóvel, conduzindo de seguida o veículo para o interior da garagem contígua à habitação.
7. Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que aquela não era já a sua habitação, e que não tinha consentimento de qualquer um dos respetivos moradores, mormente de B, para ali entrar em tais circunstâncias, o arguido,
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