Acórdão nº 613/19.7GDVFR.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2022-09-28

Ano2022
Número Acordão613/19.7GDVFR.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. n.º 613/19.7GDVFR.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular, a correr termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira-Juiz 1, por sentença, foi decidido:
«A) Absolver a arguida AA da prática em autoria material, na forma consumada, como dolo directo de um crime de maus tratos a animais de companhia, p.e.p. pelo artigo 387º, n º 1 e nº 2 do Código Penal;
B) Julgar o pedido de indemnização civil improcedente por não provado e em consequência absolver a demandada AA do pedido;(…)
*
Inconformado, o M.P. interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene a arguida da prática do crime pelo qual foi acusado apresentado nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):

«1) Vem o presente recurso interposto da sentença que absolveu a arguida AA da prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.
2) Circunscreve-se o objeto do recurso à impugnação da matéria de facto da douta sentença proferida, concretamente no que se refere à autoria da factualidade, entendendo o recorrente Ministério Público existir erro de julgamento, por violação do princípio da livre apreciação da prova; consequentemente, o recurso também abrange matéria de Direito.
3) Foram incorretamente julgadas as alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i) e o) dos factos não provados, as quais deveriam e devem ser todas julgadas como provadas.
4) Mais deve ser aditado à matéria de facto provada o seguinte facto: “As lesões descritas em 8. e 10. são compatíveis com traumatismo craniano”.
5) Em suporte da pretensão de recurso do Ministério Público, são as seguintes as concretas provas que impõem decisão da matéria de facto diversa da recorrida:
a. o auto de notícia, de fls. 4 a 6;
b. declaração da Clínica Veterinária ... com descrição das lesões sofridas e a decisão de eutanásia, de fls. 16;
c. certidão negativa de notificação da arguida, em que dois militares da GNR declaram ter visualizado a arguida a “gesticular com uma foice que transportava na mão direita”, quando recusou assinar uma notificação, de fls. 77;
d. o interrogatório da arguida AA, passagens de minutos 04:30m a 08:00m, 09:20m a 10:30m, 11:05m a 14:00m, (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática Media Studio, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 14 horas e 48 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 09 minutos.
e. as declarações do demandante BB, passagens de minutos 26:00m a 30:05m e 33:00m a 35:30m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 10 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 53 minutos.
f. as declarações da testemunha CC, passagem de minutos 08:50m a 09:55m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 09 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 19 minutos.
g. as declarações da testemunha DD, passagem de minutos 04:05m a 05:45m (da sessão de julgamento de 08/03/2022), do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática, com referência à ata da sessão de julgamento de 08/03/2022, na qual se consignou que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 20 minutos e o seu termo pelas “14 horas e 30 minutos” (sic, ata de 08/03/2022).
6) Da análise destes meios probatórios, que ficou feita na Motivação e para onde se remete, resulta que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por incorreta avaliação e valoração da prova e ofensa irreparável das regras da experiência comum, omitindo a apreciação de prova indireta ou indiciária, afastando-se e violando os critérios da livre apreciação, tal como estão prescritos no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
7) A arguida teve a oportunidade, os meios e motivo para infligir a agressão ao animal que provocou as lesões descritas nos factos provados n.º 8 e 10, na medida em que:
a. o cão entrou no terreno da arguida sem qualquer lesão;
b. esteve durante um período temporal curto na presença da arguida, o que foi admitido pela própria;
c. a arguida não gostou de ver o animal invadir o seu terreno e mostrou-se “aflita” e apavorada;
d. neste ínterim, o canídeo ganiu, o que foi ouvido pelo dono - facto provado n.º 7;
e. não existia qualquer outra pessoa no terreno em contacto com o cão, o que também foi admitido pela arguida;
f. uma vassoura não era suscetível de provocar as lesões dadas como provadas quando o animal foi encontrado inanimado no terreno contíguo à casa da arguida – factos 8 e 10;
g. tais lesões resultaram de traumatismo causado por objeto contundente e também não poderiam ser provocadas por qualquer chapas metálicas que se encontravam no terreno da arguida;
h. a arguida tinha na sua posse uma sachola com uma extremidade pontiaguda, entre outros utensílios.
8) Considerando todos estes elementos indiciários, é de excluir a intervenção de outrem que não a arguida AA na provocação das lesões no animal.
9) As lesões constatadas nos factos provados n.º 8 e 10 não surgiram do nada e, atenta a sua descrição, localização, contundência e natureza, têm explicação em ato de terceiro; por manifesta exclusão de partes e inferência lógica, esse terceiro só pode ser a arguida.
10) A partir dos indícios/factos – o cão entrou sem lesões no terreno da arguida; esteve na presença exclusiva desta, que não tolerou a invasão e tinha objeto contundente (utensílio agrícola pontiagudo); neste ínterim, o cão ganiu; as lesões, com perfuração no focinho com objeto pontiagudo – é legítimo e lógico inferir que, não havendo outra pessoa no terreno, nem sendo possível tais lesões serem provocadas por quaisquer outros objetos, a arguida foi a autora das agressões.
11) No caso em apreço, não existe ambiguidade nos indícios, nem a inferência obtida a partir deles é ilógica ou de tal modo ampla que, em si mesma comporte, uma tal pluralidade de conclusões alternativas ao ponto de nenhuma delas poder dar-se por provada.
12) Acresce que, na ausência de prova direta, o Tribunal pode e deve efetuar inferências lógicas a partir de factos conhecidos, usando das regras das presunções naturais e da experiência comum, não devendo limitar-se ao diretamente dito/visto ou não dito/não visto pelas testemunhas em audiência de julgamento ou conformar-se com a mera existência de duas versões ou com a constatação do interesse na causa por parte de algum ofendido.
13) Nos termos do disposto no artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal, pode e deve a Relação modificar a decisão recorrida no sentido propugnado nas antecedentes conclusões e na motivação, para a qual se remete.
14) Os elementos subjetivos do crime (cf. alíneas g), h) i) dos factos não provados), incluindo a atuação voluntária e livre determinação do agente, têm de ser extraídos da demais factualidade, sendo o estado interior da arguida resultante a partir de inferência das regras da experiência e da normalidade.
15) Sendo essa, como se espera, a decisão deste Venerando Tribunal, resulta claríssimo que a arguida tem de ser condenada pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, com aplicação de uma pena em conformidade com os critérios previstos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do mesmo diploma.
16) Atendendo às necessidades de prevenção geral (nível médio-elevado) e de prevenção especial (mediano), atendendo à ausência de antecedentes criminais e aos critérios de determinação da pena, releva-se ainda adequada a aplicação de uma pena de multa, entendendo-se como justa e adequada uma pena concreta entre 200 e 240 dias de multa e a fixação de um montante diário entre €5,00 e €6,00.
17) Foram violados, incorretamente interpretados e aplicados os artigos 127.º do Código de Processo Penal e 387.º, n.º 1 e 2, do Código Penal
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A arguida não apresentou resposta ao recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acolheu a posição do Ministério Público, pugnando pela procedência total do recurso.
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É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação (transcrição):
«
A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A.1) FACTOS PROVADOS
Com interesse para a boa decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. Desde 28/02/2014 que BB era proprietário e detentor de um animal canídeo, do sexo masculino, de raça podengo, de cor vermelha e branca, de nome “Scott”.
2. O referido animal residia com o seu dono, BB, em anexo à residência deste, sita em Rua ..., ....
3. No dia 13/07/2019, pelas 10h30, BB abriu o canil onde se encontrava o “Scott” para proceder à sua limpeza daquele.
4. Aproveitando distração do dono, o Scott fugiu, seguindo BB no seu encalce.
5. BB decidiu não entrar no terreno situado nas traseiras da residência da arguida AA de imediato, por não ser de sua propriedade e não lhe ter sido dada autorização.
6. Não obstante o referido em 5., BB chamou incessantemente pelo animal, em tom de voz elevado e perfeitamente audível a dezenas de metros.
7. BB ouviu o canídeo a ganir e porquanto, apesar dos chamamentos de BB, o canídeo não regressasse e porque a arguida não abriu a porta da sua residência ao BB, temendo que o Scott estivesse severamente ferido,
8. penetrou no terreno referido em 5. e encontrou o canídeo no interior daquele terreno,
...

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