Acórdão nº 574/18.0IDLSB.L1-5 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-01-18

Ano2022
Número Acordão574/18.0IDLSB.L1-5
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:



1.No âmbito do Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, nº 574/18.0IDLSB, que corre termos no Juiz 12, do Juízo Local Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi o arguido, PA, condenado, por sentença proferida em 5 de Maio de 20210, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal agravado, p. e p. pelos arts. 6º, nº 1 e 105º, nºs 1, 2, 4 al. a) e b) 5 e 7, ambos do RGIT, com referência aos arts. 30º nº 2 e 79º nº 1, ambos do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

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2.Sem se conformar com esta decisão, o arguido interpôs recurso, onde formulou as conclusões que se transcrevem:
i.-Por douta sentença proferida a fls , foi o arguido condenado, pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime continuado de abuso de confiança fiscal agravado, previsto e punido nos termos dos artigos 6º e 105º, nº 1, nº 2, nº 4, alíneas a) e b), nº 5 e n.º 7, ambos do R.G.I.T., e com referência aos artigos 30º nº 2, e 79º nº 1, ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
ii.- Contudo e salvo o devido respeito, que, aliás é muito, não pode o ora recorrente concordar com a douta decisão.
iii.- Aquando da notificação nos termos do artigo 105º do RGIT já se encontrava solicitado um pedido de pagamento das quantias em dívida em prestações, já havia sido aprovado o pedido de pagamento em prestações e já havia sido homologado o referido plano prestacional.
iv.-O douto Tribunal deu como provado que, aquando da notificação nos termos do artigo 105º do RGIT já se encontravam pagas as quantias €118.782,95, €18.556,20 e €10.478,25 - ponto 14 dos factos provados.
v.- Ao exposto acresce o facto de que, na data de notificação nos termos do artigo 105º do RGIT - 26.07.2019 - os valores estavam totalmente garantidos.
vi.-Com efeito, aquando da notificação para se proceder, no prazo de 30 dias, ao pagamento voluntário (26.07.2019), já o montante se encontrava a ser devidamente liquidado através e um plano prestacional aprovado pela própria AT com garantia prestada.
vii.-Pelo que não estão preenchidas as condições de punibilidade do tipo de crime.
viii.-Com efeito, quer se conte o prazo a partir dos 90 dias para proceder ao pagamento dos valores em dívida, ou a partir dos 30 dias após a notificação nos termos do artigo 105º do RGIT, a alegada dívida já não existia.
ix.-Isto porque quer numa situação quer noutra, já havia um plano prestacional aprovado pela AT e uma garantia prestada para suspensão dos processos executivos.
x.-O legislador pretendeu diferenciar as situações daqueles que cumprem as suas obrigações - seja de imediato, seja através de planos prestacionais - daqueles que nada fazem e que esse sim, cometem um crime de abuso de confiança fiscal nos termos do artigo 105º do RGIT.
xi.-Fez o Mmº Juiz uma interpretação errónea dos factos dados como provados uma vez que, os mesmos demonstram claramente a existência de uma descriminalização por parte do ora arguido, devendo este ser absolvido da pratica do crime de que vem acusado por inexistência de responsabilidade criminal uma vez que estão descriminalizados os factos por eles praticados.
xii.-Violou a douta sentença o dever de pronuncia, por omissão - artigo 379º, nº 1, alínea c), do CPP - bem como o artigo 105º do RGIT.”

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3.A Digna Magistrada do Ministério Público, junto do tribunal de primeira instância, respondeu ao recurso, concluindo no sentido de o mesmo ser julgado improcedente, tendo extraído as seguintes conclusões:
• QUESTÃO PRÉVIA - Da violação do disposto no art.412.° n.° 2 e 3 do C.P.P.:
O recorrente impugna a matéria de facto constante da decisão recorrida, invocando erro notório na apreciação da prova (na motivação do recurso).
Das motivações apresentadas pelo recorrente resulta a intenção do mesmo em impugnar a decisão relativa à factualidade dada como provada.
Contudo, apesar de manifestar a intenção de impugnar a matéria de facto, o recorrente não deu cumprimento ao exigido pelo art. 412.° n.° 3 do C.P.P.
No caso concreto o recorrente nem sequer indica qual a factualidade que entende que não deve ser dada como provada ou não provada.
Assim sendo, não cumpre o ónus de impugnação que se encontra contido no art.412.° n.° 3 e n.° 4 do Código de Processo Penal.
Acresce que, não obstante alegar erro na apreciação da prova e alegar que tal prova deveria ter outro desfecho jurídico não indicou, da prova colhida nos autos e da produzida em julgamento, quais as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas.
Antes veio o recorrente, no final do seu recurso indicar nova prova, com indicação de duas testemunhas.
Para se impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto teria o arguido que indicar as provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que não fez.
Concluindo o recorrente não identifica qual a matéria de facto que impugna nem identificou quais as provas que impunham decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo.
Quanto a uma eventual impugnação da matéria de direito que o recorrente pretendesse fazer, também não deu cumprimento ao disposto na lei (art. 412.° n.° 2 do C. P. P.), dado que não indicou quais as normas jurídicas violadas; o sentido que no seu entendimento o tribunal recorrido interpretou cada norma ou a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou aplicada; e em caso de erro na norma aplicável, qual a norma jurídica que no seu entendimento devia ser aplicada.
Nada disto fez o arguido, sendo que o que pretendia - tal como invocou (erro notório na apreciação da prova) - era impugnar a decisão quanto à matéria de facto embora não o tenha conseguido, dentro dos parâmetros legais.
Assim, concluímos que não estão reunidas, as condições necessárias para que o tribunal ad quem conheça da matéria de facto, por violação do previsto no art.412.° n.° 3 do C.P. Penal, devendo ser o presente recurso rejeitado, nos termos do previsto no art. 417.° n.° 3 e 420.° n.° 1, al. c) ambos do C. P. Penal.
Caso assim não se entenda, constata-se da leitura dos factos dados como provados - e que não são postos em causa pelo arguido recorrente - o arguido, administrador efectivo da sociedade, agindo em nome, representação e interesse da sociedade "KC, S.A.", sabia que os montantes resultantes da liquidação efectuada em sede de IVA não pertenciam à sociedade, mas ao Estado e ainda assim decidiu não cumprir as obrigações de entregar ao Fisco os aludidos montantes, agindo com a consciência de que era obrigação da sociedade entregar ao Fisco as quantias de IVA recebida pela mesma.
Quanto às quantias declaradas pela sociedade às Finanças, recebidas e em dívida às Finanças, nos vários momentos, chegou o tribunal recorrido à conclusão que - facto dado como provado n.° 12 - as quantias de € 118.782,95 (facto provado n.° 5), € 55.668,60 (facto provado n.° 6) e €50.295,61 (€ 100.591,23 -€ 50.295,62 - facto provado n.° 11), não foram pagas nem dentro do prazo legal nem nos 90 dias subsequentes ao termo de tal prazo - facto dado como provado n.° 12.
Considera assim o tribunal que mesmo depois da notificação do artigo 105.° n.° 4 do RGIT os valores mantiveram-se por pagar - facto dado provado n.° 14.
Quanto às quantias em dívida à data da primeira sessão de julgamento deu-se como provado o seguinte - pontos 18 e 19 dos factos dados como provados - provou-se:
- que a quantia mencionada no ponto 5 foi paga € 118.782,95 e;
- as quantias referidas a ponto 6 e 7 estavam ainda em dívida os valores de € 46.390,50 e € 35.626,05, estando tais dívidas a ser pagas no âmbito de um plano de pagamento em prestações.
Dos factos dados como provados e da sua fundamentação resulta bem explicados os valores declarados pela sociedade às Finanças quanto aos períodos de imposto em dívida, valores efectivamente recebidos pela sociedade e quais os valores que, nos vários momentos, não foram entregues ao Estado, concluindo-se que após todos os prazos legais ainda estavam por entrega ao Estado os valores acima mencionados, todos eles superiores a €7.500,00.
Não procede a alegação do recorrente de que houve um erro na apreciação da prova atenta a matéria de facto dada como provada e a prova que a suporta e que serviu a decisão de condenação.
Considera o M. P. não existir nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379.° n.° 1 al. c) do CPP, por omissão de pronúncia dado que nenhuma questão - que tenha sido apresentada/alegada em julgamento ou durante o processo - ficou por apreciar.
Quanto à invocada não verificação de condição de punibilidade por ter a sociedade acordado com a Autoridade Tributária um plano prestacional na pendência do processo crime tal não deve proceder sendo reconhecida, quer na jurisprudência quer na doutrina a autonomia da responsabilidade tributária (pelo imposto devido) quanto à responsabilidade penal tributária, confundido (ou querendo confundir) o recorrente estas duas esferas, entendemos que a argumentação expendida pela defesa falece. Acresce que o crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro e, como tal é consumado no momento em que o agente não entrega a prestação tributária devida -neste sentido vide o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 5.6.2017, in www.dgsi.pt.
Segundo o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 14.1.2015, proc. n.° 2689/13.1IDPRT.P1, disponível em fontes abertas: "I- O acordo de pagamento da dívida fiscal não extingue a responsabilidade penal. II- Há apropriação quando se prova que o arguido utilizou os valores retidos para pagamento de dívidas da sociedade.".
Por sua vez o Ac. do
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