Acórdão nº 54/22.9PAENT.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 2024-02-06

Ano2024
Número Acordão54/22.9PAENT.E1
ÓrgãoTribunal da Relação de Évora
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório

No Juízo de Competência Genérica do … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 54/22.9PAENT, no qual, realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo (transcrição da parte que interessa à decisão a proferir nos presentes autos):

“Em face do exposto, o Tribunal (…) decide:

1) Declarar a nulidade insanável da acusação por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar pelo crime de ameaça agravada, extinguindo, quanto a este crime, o procedimento criminal;

(…).”

*

Inconformado, o MP interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Por sentença proferida a 29 de Maio de 2023, a Meritíssima Juíza do tribunal a quo decidiu a seguinte questão prévia: “Vem o Arguido acusado, além do mais, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal. (…) Considerando a natureza semipública deste crime [ameaça agravada] (pelas razões supra expostas), ao ter sido deduzida acusação pública por este crime sem que os putativos visados com o crime de ameaça agravada tenham apresentado queixa, agiu o Ministério Público sem legitimidade para tal, nos termos do artigo 49.º do Código de Processo Penal.

Ora, o segmento normativo da parte inicial da alínea b) do artigo 119.º do Código de Processo Penal («A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º») contempla não só situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere àquele legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o Ministério Público acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.º do compêndio legislativo referido. (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19-02-2014, disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 154/11.0GBCVL.C1).

Assim, a falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação por crime semipúblico constituiu nulidade insanável, que deverá ser declarada em qualquer fase do procedimento, de acordo com o disposto no proémio do artigo 119.º, pelo que se declara a nulidade parcial da acusação no que concerne ao crime de ameaça agravada, extinguindo-se, quando a este crime, o procedimento criminal encetado contra o Arguido”.

2. Ora, o Ministério Público não pode conformar-se com tal decisão por ser a mesma contrária à correcta interpretação das normas invocadas que, contrariamente à interpretação do tribunal a quo, determina que o crime de ameaça agravado é um crime público e, dessa forma, o Ministério Público tem legitimidade para acusar.

3. Consideramos, com o devido respeito, que a Mm.ª Juíza do tribunal a quo violou o disposto nos artigos 48.º, 49.º e 52.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e nos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, pelo que o presente recurso se limitará a questões de direito em conformidade com o disposto no artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

4. Nos presentes autos, o arguido Frederico José Correia Martins foi acusado pela prática, entre outro, como autor material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.

5. Sucede que, o crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, do Código Penal, tem natureza pública, não estando este crime dependente da vontade do ofendido e da respectiva apresentação de queixa, e, por conseguinte, o Ministério Público tem legitimidade para acusar.

6. A inúmera e maioritária jurisprudência considera que o crime de ameaça agravado tem natureza pública – neste sentido e a título exemplificativo: acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-10-2019, Fátima Bernardes, processo n.º 538/17.0PBELV.E1, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04-12-2018, Maria de Fátima Bernardes, processo n.º 1377/15.9PBFAR.E1, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-05-2021, Elsa Paixão, processo n.º 775/18.0GBVFR.P1, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-05-2012, Coelho Vieira, processo n.º 284/10.6GBPRD.P1, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-07-2016, Vasques Osório, processo n.º 467/13.7GASEI-A.C1, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-07-2020, José Eduardo Martins, processo n.º 667/18.3PCCBR.C1, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-05-2011, Tomé Branco, processo n.º 1028/09.0GBGMR.G1, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-10-2020, Maria Leonor Botelho, processo n.º 223/19.9PCRGR.L1-9, todos in www.dgsi.pt.

7. Assim, o tribunal a quo não poderia ter verificado a nulidade insanável por falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação, por falta de queixa, e, por conseguinte, também não poderia ter declarado a nulidade parcial da acusação no que concerne ao crime de ameaça agravado, e extinguir, quanto a este crime, o procedimento criminal encetado contra o arguido.

Pugnando pelo seguinte:

“Termos em que, e nos mais que doutamente se suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo revogada a sentença recorrida na parte em que considerou o crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, como um crime de natureza semipública, constituindo uma nulidade insanável por falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação, e declarou a nulidade parcial da acusação no que concerne ao crime de ameaça agravado, extinguindo-se, quanto a este crime, o procedimento criminal encetado contra o arguido, a qual viola o disposto nos artigos 48.º, 49.º e 52.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e nos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, e ser substituída, nesta parte, por outra decisão que julgue inválida a sentença proferida pelo tribunal a quo, por inexistir nulidade insanável por falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação, e que determine o prosseguimento dos autos para apreciação, julgamento e decisão quanto a tal ilícito criminal.”

O recurso foi admitido.

O arguido não respondeu ao recurso.

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de “que o recurso deve obter provimento.”

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“QUESTÃO PRÉVIA – DA FALTA DE LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA O PROCEDIMENTO CRIMINAL QUANTO AO CRIME DE AMEAÇA AGRAVADO

Vem o Arguido acusado, além do mais, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.

Pese embora, no despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal, de 03-02-2023, o Tribunal haja declarado que «o Ministério Público tem legitimidade para acusar», tal despacho foi meramente tabelar, não tendo o Tribunal apreciado especificamente tal questão.

Todavia, melhor compulsados os autos, e revista, no ínterim, a posição da Signatária acerca da natureza do crime de ameaça agravada, conclui-se que, no caso concreto, por não ter sido apresentada queixa pelo(s) agente(s) visado(s) com as palavras que, na acusação, são imputadas ao Arguido (agentes esses que, de resto, não se mostram concretamente identificados no libelo acusatório), não tinha o Ministério Público legitimidade para acusar.

Vejamos porquê.

Para o tipo-base do crime de ameaça (com assento legal no artigo 153.º do Código Penal), prevê-se, no respetivo n.º 3, a necessidade de queixa para instauração e prosseguimento do procedimento criminal, sendo certo que no artigo 155.º do mesmo diploma não se reitera a exigência da queixa como condição de procedibilidade por tais crimes (e isto, independentemente de qual seja a conduta criminosa basilar).

No entanto, e conquanto não se desconheça ser minoritária a corrente jurisprudencial (representada pelos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 13-11-2013, processo 335/11.7GCSTS.P1 e de 06-04-2022, processo n.º 1301/19.0PBAVR.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) que vem concluindo que o crime de ameaça agravada tem natureza semipública (exigindo, por conseguinte, queixa-crime para a instauração e prosseguimento da ação criminal), são relevantes os argumentos aduzidos em abono desta tese, expendidos, não apenas nos mencionados arestos, mas também no artigo de PEDRO DANIEL DOS ANJOS FRIAS, na Revista Julgar n.º 10, denominado «Por quem dobram os sinos? A perseguição pelo crime de ameaça contra a vontade expressa do ofendido? Um silêncio ruidoso» (Coimbra Editora, 2010, páginas 39 a 57).

Entendem os que adotam esta posição que, conquanto o elemento literal da interpretação possa apontar no sentido de todos os crimes englobados no artigo 155.º do Código Penal terem natureza pública, mesmo sendo semipúblicos os tipos fundamentais respetivos...

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