Acórdão nº 4987/21.1T9BRG.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2023-11-14

Ano2023
Número Acordão4987/21.1T9BRG.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordaram, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 4987/21.... que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... - Juiz ...,, a 17 de maio de 2023, foi proferida a seguinte decisão [transcrição]:
“ Em 10/03/2023, vieram os assistentes AA e BB deduzir acusação particular contra os arguidos CC e DD, imputando-lhes a prática de um crime de injúria e de um crime de difamação, ps. e ps. pelos artigos 180.º, 181.º e 183.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal.
*
O Ministério Público não acompanhou a acusação particular.
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Nos termos do disposto na al. a), do n.º 2, do art.º 311.º, do Código de Processo Penal, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;” Esclarecendo as als. b) e d, do n.º 3, do mesmo artigo, que se considera a acusação manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos ou se os factos não constituírem crime.
No que respeita à narração dos factos, preceitua a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.
Para que se preencha o requisito da narração dos factos, é necessário que a acusação contenha a “descrição dos factos imputados”, e acrescenta-se, “todos” os factos imputados, uma vez que o artigo 13.º, do Código Penal, dispõe que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, sendo que a acusação tem de descrever os factos provados relativos ao elemento subjectivo. Isto porque não se pode presumir que o agente agiu nem com dolo, nem com negligência.
O que atrás fica dito é corroborado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. De facto, a título de exemplo pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/06/2003 (processo 10164/02-5, publicado no sítio www.dgsi.pt), que, “sendo a decisão omissa de factualidade provada quanto ao elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional imputado à ora recorrente, não poderia esta ter sido sancionada, impondo-se a respectiva absolvição”.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do art. 283.º, n.º 3, do Código Penal, constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República Portuguesa – cfr. art.º 32.°.
Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª.
Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que a acusação particular não contém a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito. De facto, analisada a mesma à luz dos considerandos supra expostos, verifica-se que não indica todos os factos que se exigiria para que se possa concluir pelo preenchimento do dolo. Convocando-se a jurisprudência consagrada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de novembro, poderá ler-se. relativamente ao dolo, que a sua alegação deverá ser feita através de uma «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).». No que se refere ao seu elemento subjetivo, o crime de injúria é um crime doloso. Ora, analisados os factos vertidos na acusação, o tribunal entende não se poder concluir pela verificação do elemento subjetivo dos tipos de crime de injúria/difamação, dado que, para existir dolo, necessário é que o arguido tenha conhecimento da ilicitude da sua conduta e, ao longo dos factos vertidos na acusação, em lado algum se faz menção ao elemento intelectual do dolo, não se podendo entender tal como implícito – cfr., a título de exemplo, o teor do ac. proferido pelo T.R.C., pr. n.º 189/14.1PFCBR.lC1, 07/03/2018, disponível in www.dgsi.pt : “O comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objetiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos. A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjetivo do tipo de burla (e é de deficiente e insuficiente descrição do tipo subjetivo que se trata no caso sub judice e não de omissão integral de descrição do tipo subjetivo), não é susceptível de ser integrada, em julgamento.”. Com efeito, como afirma o Ac. da RG, in CJ nº 165, II, 2003, “não existem presunções de dolo; e, por isso, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir das circunstâncias externas da ação concreta. Embora, processualmente, o dolo seja apreciado de forma indireta, através de atos de natureza externa, é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas de cada ilícito. Não se pode pois ter como implícita ou subentendida a descrição do dolo. Não há lugar à existência de"factos implícitos", mas apenas a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. Desta forma, não se poderá concluir pela existência de um ilícito penal.
Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº2, alínea a) e nº3, alínea b), considero a acusação particular apresentada pelos assistentes manifestamente infundada e, consequentemente, rejeito a mesma.
Custas pelos assistentes (artigo 515º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal), com taxa de justiça fixada em 1 UC, para cada um (art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P. e tabela III).
Notifique.
»

I.2 Recurso da decisão
Inconformados com tal decisão, dela vieram interpor o presente recurso os assistentes AA e BB, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraíram as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)

1. O douto tribunal recorrido rejeitou a acusação particular formulada pelos Recorrentes.
2. Mais se decidiu pela inadmissibilidade de convite ao aperfeiçoamento da acusação.
3. Inequivocamente, o crime de injúrias pressupõe que o agente saiba e queira que as suas palavras contenham imputação inverídica ou desonrosa, e que com elas queira causar constrangimento e desconsideração para com o ofendido, mediante um ato de vontade livre e consciente.
4. A liberdade de ação dos Arguidos, e com isto a sua livre decisão de agir de modo diverso da lei, em desconformidade com o direito e com um dever-ser jurídico, pode presumir-se pelas palavras que o mesmo proferiu.
5. A acusação não é totalmente omissa quanto ao relato dos factos que integram o dolo do agente, nem quanto a indícios da sua liberdade de ação.
6. Neste sentido, a admissão da acusação particular levaria a que se procedesse ao devido estudo do caso em questão e a uma digna decisão acerca do mérito da causa e eventual merecimento de sanção penal.
7. Em conformidade, deverá ser revogada a douta decisão em mérito, admitindo-se a acusação particular formulada.
8. Sem prescindir, a rejeição da acusação particular por ser manifestamente infundada, em específico por não estar descrito de forma completa o elemento subjetivo do crime imputado ao arguido, não implica, necessariamente, o arquivamento dos autos. 9. Deverá ser concedida a possibilidade de correção da acusação rejeitada, através da apresentação de nova acusação, onde se veja corrigida a insuficiente descrição de um elemento típico, desde que as demais circunstâncias do crime não sofram alteração.
10. Deverá ser concedida ao Recorrente a possibilidade de aperfeiçoar a acusação formulada, proferindo-se nova acusação, sob pena de violação do disposto nos artigos 283.º, n.º 3 ex vi do artigo 285.º, n.º 3, 119.º e 311.º CPP.

NESTES TERMOS,
revogando o douto despacho recorrido, e admitindo a acusação particular formulada, ou, se assim não se entender, concedendo a possibilidade aos Recorrentes de proceder à prolação de nova acusação particular aperfeiçoada, farão V. Exas a habitual
J U S T I Ç A!”.

I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação, quer a Ex.mª Sr.ª Procuradora da República junto da 1.ª instância, quer os arguidos responderam ao recurso interposto pelos assistentes, pugnando aquela pela sua procedênci...

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