Acórdão nº 49/22.2GBVIS.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 08-11-2023

Data de Julgamento08 Novembro 2023
Ano2023
Número Acordão49/22.2GBVIS.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU - JUIZ 1)
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1. … foi acusado da prática, em autoria material, um crime de incêndio florestal, p. e p. pelo art. 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), por referência ao art. 202.º al. a), ambos do Código Penal, pelos factos constantes da acusação …

2. Na sequência do julgamento, a acusação foi julgada procedente e, em consequência, o arguido condenado como autor de um crime de incêndio, p. e p. pelo art. 274.º, n.os 1 e 2 al. a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, cuja execução foi suspensa, por igual período, com sujeição a regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, … que contemple, entre o mais, a sensibilização para a problemática do alcoolismo.

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3. Não se conformando, recorre para a Relação de Coimbra, com fundamento da motivação que apresentou e que termina com a formulação das seguintes conclusões:

“1.ª/ O tribunal recorrido utilizou prova proibida para fundamentar a matéria de facto dada como provada.

2.ª/ O arguido foi abordado na sua habitação por um agente da GNR que o inquiriu sobre os factos que investigava, suscetíveis de integrar a prática de um crime de incêndio florestal, tendo alegadamente o arguido (na altura mero suspeito) confessado ao agente da GNR a autoria dos factos.

3.ª/ Perante isto, o agente da GNR pediu ao suspeito para lhe mostrar como a situação tinha decorrido, continuando a sua inquirição e apenas no final é que accionou a entidade competente para investigação, a Polícia Judiciária.

4.ª/ A atuação do agente da GNR extravasou as medidas cautelares previstas no art. 249.º do CPP, pois aquele agente tinha já fundada suspeita que o suspeito tinha cometido um crime e portanto deveria ter constituído o mesmo como arguido nos termos do art. 59.º, n.º 1 ou contactado de imediato a entidade competente para o fazer.

5.ª/ Por ter sido violado o art. 59.º, n.º 1, as declarações prestadas pelo arguido na qualidade de suspeito constituem prova proibida nos termos dos arts. 58.º, n.º 6 e 125.º a contrario do CPP.

6.ª/ A reprodução ou leitura daquelas declarações está ainda vedada pelos arts. 356.º, n.º 1 e 357.º do CPP, de onde decorre que o militar da GNR … que recebeu aquelas declarações estava impedido de prestar depoimento na qualidade de testemunha sobre o conteúdo das mesmas, como resulta claramente do art. 356.º, n.º 7.

7.ª/ No entanto, o tribunal recorrido admitiu a inquirição do militar GNR … e utilizou o depoimento desta testemunha para dar como provada matéria de facto e condenar o arguido.

9.ª/ Uma interpretação do art. 356.º, n.º 7 do CPP no sentido em que é admitido que um órgão de polícia criminal possa prestar depoimento na qualidade de testemunha acerca de declarações prestadas por suspeito, antes da sua constituição de arguido, no momento em que já existia fundada suspeita de prática de crime pelo mesmo, é inconstitucional por violação das garantias de defesa no processo criminal previstas no art. 32.º da CRP.

10.ª/ O tribunal recorrido julgou mal os factos dos pontos n.ºs 2., 3., 4., 8., 10., 11., 12., 13., 14. e 15. (na parte em que diz “após o momento referido em 4.”) do acórdão recorrido ao dá-los como provados.

15.ª/ Para além disso, os inspetores da PJ que procederam à inspeção do local e reconstituição, foram peremptórios ao afirmar que não podiam dizer se as habitações estariam em risco …

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4. A magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu …

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5. Na Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu … parecer:

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6. O tribunal colectivo julgou provada a seguinte matéria de facto:


“…

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E julgou não provados os seguintes factos:

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E expôs a seguinte motivação da decisão de facto

“…

Da arguida nulidade

Invocou o arguido, em sede de contestação, a nulidade da prova obtida através das declarações prestadas pelo arguido perante a GNR antes ainda de ter sido constituído nessa qualidade, bem como da prova por reconstituição feita pela P.J. com base naquelas declarações.

Em sede de audiência de julgamento, estendeu a arguição de nulidade ao depoimento prestado pelo militar da GNR, na parte em que reproduziu as declarações prestadas perante si pelo arguido.

Cumpre apreciar.

Resulta do auto de notícia de fls. 144 (lavrado em 20/07/2022) que o incêndio a que se reportam os autos foi comunicado ao militar da GNR autuante, via telemóvel pelas 19:00 horas do dia 14/07/2022, tendo-se realizado inspecção ao local no dia 16/07/2022. Mais resulta que após exame do local e na sequência das diligências de investigação, o ora arguido foi contactado pelas 09:50 horas do dia 20/07/2022, assumiu a autoria dos factos, entregou um isqueiro … e indicou aos militares da GNR o percurso efectuado e o local onde ateou o fogo, ….

Por sua vez, a fls. 24 consta a comunicação da notícia de crime por parte da P.J., da qual se extrai que a GNR contactou a P.J. pelas 10:25 horas do dia 20/07/2022, dando-lhe conta de que, …, o ora arguido teria assumido a autoria do mesmo, mediante actuação dolosa, …

Decorre ainda do auto de diligência de fls. 25, que os elementos da P.J. fizeram deslocação ao local …, inquirição de 4 testemunhas e constituição do arguido nessa qualidade, para o que foi nomeado defensor. A nomeação de defensor, … ocorreu entre as 12:03 e as 12:21 horas do mesmo dia 20/07/2022 …

Pelas 15:20 horas do mesmo dia, na presença da Ilustre Defensora nomeada ao arguido, procedeu-se à recolha de prova por reconstituição, …

Não consta dos autos qualquer auto de inquirição/tomada de declarações ao ora arguido perante a GNR, mas apenas perante a Polícia Judiciária, pelas 16:09 horas do dia 20/07/2022, …

Os termos em que se procedeu à recolha de prova foram também descritos em audiência de julgamento, pelas testemunhas …

Invoca o arguido que se impunha aos militares da GNR que, logo que o arguido confessou (às 09:50 horas do dia 20/07/2022) tivessem interrompido a inquirição para o constituir arguido.

Sucede que o arguido não estava a ser formalmente inquirido, antes se tratando de uma conversa dos militares da GNR com a pessoa que teria sido a primeira a aperceber-se do fogo, no âmbito das diligências cautelares a que alude o art. 249.º, n.º 2 al. b) do Código de Processo Penal, para apuramento das circunstâncias em que eclodiu o incêndio.

E nem se diga que a GNR estava obrigada a constituir o arguido nessa qualidade logo que o mesmo afirmou ter sido ele a atear o fogo.

Desde logo porque, sem prejuízo das diligências cautelares que lhe cabe assegurar (art. 2.º, n.º 3 da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto), não é à GNR que cabe a investigação de incêndios dolosos, antes sendo competência reservada da Polícia Judiciária – art. 7.º, n.º 3 al. f) da Lei n.º 49/2008, de 27 de Agosto.

E depois, porque a constituição de alguém como arguido depende, nos termos do art. 58.º do Código de Processo Penal, da verificação de uma fundada suspeita da prática de crime. E para tal não basta que a pessoa se afirme autora de determinado crime, necessário se tornando que os termos em que o faz apresentem credibilidade em face das demais circunstâncias do caso. Na situação concreta dos autos, a suspeita contra o ora arguido acabou por ter-se como fundada mediante a entrega por este do isqueiro …

E só então existindo razões para a GNR ter por fundadas as suspeitas contra o arguido, porque as mesmas apontavam para um acto doloso, comunicou à P.J., a quem cabia a competência para a investigação.

Conclui-se pois que não pode deixar de ser tido com válido, em termos probatórios, o depoimento prestado pelo militar da GNR …, no tocante à reacção e atitude do ora arguido quando abordado no âmbito das diligências cautelares ou de polícia que inicialmente levou a cabo, …

Após recolha inicial de informações … e ainda no âmbito das diligências destinadas a apurar das circunstâncias do incêndio, previamente à instauração formal do inquérito (só autuado em 21/07/2022, conforme fls. 108), os militares da GNR contactaram novamente o arguido para lhe exporem as dúvidas que o relato por aquele feito na primeira abordagem, havia suscitado. Contacto que teve lugar às 09:50 horas, no decurso do qual, afirmando a autoria do incêndio, o arguido entregou o isqueiro e indicou aos militares da GNR o ponto onde tinha ateado o fogo. E só então, por ser tal relato credível e compatível com a observação feita na inspecção ao local, pôde aquela força militar concluir pela existência de indícios de actuação dolosa, crime cuja competência de investigação cabia à P.J., que foi de imediato accionada, pelas 10:25 horas do mesmo dia.

De...

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