Acórdão nº 472/22.2TELSB-A.L1-3 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-05-24

Ano2023
Número Acordão472/22.2TELSB-A.L1-3
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1. 1. – Decisão Recorrida
No processo que corre termos no Tribunal Central de Instrução Criminal sob o n.º 472/22.2 TELSB, foi, por despachos judiciais de 29.07.2022 e 05.08.2022, confirmada a suspensão temporária, por um período de três meses, dos movimentos a débito sobre a conta BPI n° xxx-xxx-xxx, bem como a inibição dos meios de movimentação à distância sobre a mesma, e de proibição dos acessos ao cofre bancário associado à mesma conta BPI n° xxx-xxx-xxx, pertencentes a YS.
*
1. 2. – Recurso
1.2.1. – Inconformada com essa decisão, dela recorreu a titular de tal conta bancária e cofre, YS, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões:
«1ª O presente recurso é interposto de dois despachos, os quais [melhor identificados no proémio do presente recurso] respectiva e sucessivamente determinaram (i) a homologação de suspensão de operações bancárias sobre contas bancárias, identificadas a fls. 138, de que a ora recorrente é titular (ii) a busca domiciliária e apreensão de documentos e valores na residência da ora recorrente, diligência já efectuada.
2.ª Os referidos despachos limitam direitos fundamentais, com tutela constitucional, no caso o direito de propriedade privada [artigo 62° da Constituição] e a inviolabilidade do domicílio [artigo 34° da mesma Lei Fundamental].
3.ª Os despachos recorridos enfermam de erro de Direito, na interpretação e aplicação das normas legais em que se fundamentam, concretamente os artigos 368ª-A do Código Penal e o Regulamento [EU] 833/2014, concretamente o seu artigo 5-b, que é o seu fundamento expresso.
4.ª Efectivamente, para efeito da realização do crime de branqueamento de capitais, tal como se encontra previsto no artigo 368º-A do Código Penal, não pode considerar-se como crime precedente a violação do Regulamento [EU] n.° 833/2014, nomeadamente o estatuído no artigo 5º-b, com a redacção em vigor, ao contrário do que assim interpretaram, e como tal decidiram, os despachos aqui impugnados.
5ª O referido Regulamento prevê medidas de diverso tipo, mas de natureza estritamente política, aplicáveis a determinados cidadãos, como medida retaliatória, definida pelos competentes órgãos da União Europeia, face ao conflito armado existente entre a Rússia e a Ucrânia.
6ª De tal Regulamento não resulta que os visados sejam suspeitos de crime, ou que a violação em que incorram do ali previsto seja punido a título de crime.
7.ª O crime de branqueamento de capitais pressupõe a existência de um facto ilícito típico de natureza criminal, o que no caso não se verifica.
8.ª A ora recorrente [é fundamental consigná-lo], que reside em Portugal com os filhos, tem a nacionalidade portuguesa, não está abrangida por qualquer medida restritiva com tal natureza.
9.ª Para além disso, os preceitos do Código de Processo Penal que legitimam uma busca domiciliária e a subsequente apreensão de documentos e valores, especificamente os artigos 174°, 175°, 176º, 177°, 178°, 179º e 269º, n.° 1 do referido diploma, expressamente citado no despacho recorrido e no consequente mandado, pressupõem por igual a suspeita da prática de um acto ilícito típico de natureza criminal.
10ª Ora também aqui, pela mesma razão, não existe acto ilícito suspeito que possa considerar-se crime, pois não reveste tal natureza a violação do estatuído no artigo 5º-b do Regulamento [EU] n.º 833/2014.
11.ª Assim, os despachos impugnados carecem de fundamento legal.
Nestes termos, devem os despachos recorridos ser revogados por carecerem de fundamento legal, e assim dados sem efeito (i) o despacho de homologação judicial da suspensão de operação bancária acima identificada, com a concomitante libertação das contas bancárias identificadas a fls. 138, sobre a qual recaiu a suspensão em causa (ii) o despacho que ordenou a busca domiciliária e subsequente apreensão de documentos e valores na residência da ora recorrente, diligência já materializada, com a consequente restituição ao aprendido tudo como é de JUSTIÇA!».
*
1.2.2. – O Ministério Público respondeu, pugnando pela manutenção das decisões recorridas e apresentando as seguintes conclusões:
«1° - Nos presentes autos está em causa a suspeita de a Recorrente YS estar a permitir a utilização da sua conta junto do BPI para a circulação de fundos pertença de terceiros, aproveitando a mesma a autorização de residência em Portugal para veicular fundos com origem em terceiros e provenientes de contas bancárias na Federação Russa, em operações posteriores a Fevereiro de 2022, permitindo assim a violação da proibição estabelecida no art. 5.°-B -1 do Regulamento (UE) 833/2014, do Conselho, de 31 de Julho 2014, na redação atualmente vigente.
2° - Está em causa, além do mais, a prática do crime de violação de medidas restritivas, crime p. e p. no art. 28.°-1 e 2 da Lei 97/2017, de 23 de agosto, com a subsequente ocultação e a dissimulação da origem de fundos sujeitos a essas medidas e já introduzidos em Portugal, a qual é suscetível de integrar a prática de crime de branqueamento, p. e p. no art. 368.°-A do Cod. Penal, pelo que a medida de bloqueio de fundos e a autorização de busca domiciliária, que são objeto do presente recurso, se mostram justificadas.
3°- A suspensão de operações a débito não abrange todas as contas abertas pela ora recorrente em Portugal, mas tão só uma conta em que a ora recorrente recebeu transferências com origem última em Bancos sitos na Rússia.
4° - A recorrente YS era, em Fevereiro de 2022, titular de uma autorização de residência para investimento (ARI ou vulgo Visto Gold), obtida em 2015, com suporte na realização de um investimento imobiliário superior a 1 (um) milhão de euros, o que a colocava na excepção, prevista art. 5°-B n° 3 do Regulamento (UE) n° 833/2014, do Conselho, para a proibição de realização de depósitos por parte de cidadãos russos estabelecida no n° 1 do mesmo preceito.
5° - Com efeito, na conta à ordem da ora Recorrente junto do BPI, conta associada ao NUC 4-xxx, foram recebidas as seguintes transferências:
- nos dias 24 e 25 de Fevereiro de 2022, recebeu duas transferências, com origem no GAZPROMBANK, da Rússia, nos montantes de € 150.000,00 e de € 20.000,00;
- na data de 28-06-2022, recebeu duas transferências, com origem no Banco JULIUS BAER AND C°, da Suíça, nos montantes de € 882.000,00 e de € 765.000,00, resultantes de fundos que anteriormente haviam transitado da Rússia para a Suíça.
6° - Logo depois de terem sido recebidos, tais montantes começaram a ser movimentados, por via de cheques bancários, para sinalizar a aquisição de novos imóveis em Portugal, tendo sido identificados contratos promessa relativos à aquisição de um imóvel em Lisboa, pelo preço de € 850.000,00, e outro em Cascais, pelo preço de € 980.000,00.
7° - Tal estratégia de investimentos imobiliários já havia sido desenvolvida, designadamente em 2019, com a aquisição de um imóvel sito na Rua ..., n° …, em Lisboa, pelo preço de € 1.450.000,00, morada que, no entanto, correspondia ao endereço em Portugal do cidadão russo PV, que reside, de facto, na Rússia e que tinha tentado abrir contas em Portugal, designadamente junto do Novo Banco, o que lhe havia sido recusado.
8° - Constata-se que, quer o referido PV quer a YS, foram quadros de relevo dentro do Grupo GAZPROM, entidade pública da Rússia, sendo o primeiro Diretor da entidade PJSP GAZPROM e a segunda colaboradora e mesmo vice-presidente da área financeira internacional do GAZPROMBANK, pelo menos até 2018.
9° - A ora recorrente, YS, apresentou perante o BPI uma declaração do GAZPROMBANK em como teria depósitos junto daquele Banco, na Rússia, de cerca de 2,5 milhões de euros, mas constata-se que esse património era ainda associado ao tempo do seu casamento com um identificado MS, que foi também administrador do Grupo GAZPROM, sendo certo que a totalidade dos fundos transferidos para Portugal pela Recorrente, desde 2014, ultrapassa já esse montante.
10° - Até Julho 2022, a ora recorrente, YS, apenas permanecia por curtos períodos em Portugal, apresentando-se até então como residente fiscal na Rússia e fazendo-se representar por procuradores nos actos de aquisição de imóveis em que foi adquirente, tendo apenas adquirido a nacionalidade portuguesa em Agosto de 2022, já na pendência do presente processo.
11° - Foi ainda identificado, antes das decisões de bloqueio de conta e de busca, um contrato de aluguer de cofre bancário por parte da ora Recorrente e foi caraterizado o negócio de compra de novo imóvel, pretendido realizar com os fundos transferidos, como sendo uma compra seguida de arrendamento aos vendedores, sem justificativo económico ou financeiro para esse negócio.
12° - A origem e a forma de movimentação dos fundos na referida conta da ora Recorrente, quer a crédito quer a débito, em datas posteriores ao início do mês de Fevereiro passado, bem como a ligação da ora recorrente a outros cidadãos russos ainda sem autorização de residência em Portugal, caso do referido PV, permitiram indiciar a suspeita de que os fundos que remanescem na conta BPI acima identificada terão origem última em terceiras pessoas, residentes na Rússia e sem ligação a Portugal, estando portanto abrangidos pelas medidas restritivas aplicadas pela União Europeia.
13° - Acresce ainda estarmos perante fundos com origem última numa entidade pública da Federação Russa, a GAZPROM, também sujeita a sanções, não havendo evidência do manifesto fiscal, a título de vencimentos ou de prémios, das mesmas quantias naquele país ou em qualquer outro.
14° - Em face da suspeita de estarem a ser ocultados fundos de terceiros, foi determinada e confirmada judicialmente a suspensão das operações a débito sobre a conta à ordem, no BPI, da ora recorrente, com o n° xxx-xxx-xxx, tendo então a mesma ainda um saldo de € 1.239.515,57, para além
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT