Acórdão nº 4489/20.3T8ALM.L1-2 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-09-28

Ano2023
Número Acordão4489/20.3T8ALM.L1-2
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Policlínica S…, Lda., ré nesta ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, em que é autora MF, notificada da sentença condenatória, proferida em 4 de setembro de 2022, e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.
A autora tinha intentado a ação contra a ré alegando, em síntese, ser sua sócia e gerente desde 11/11/1986, auferindo mensalmente a quantia bruta de 1.009,46 €, à qual acresce o subsídio de refeição no valor global mensal de 104,94 €, pelo exercício das funções inerentes ao cargo de gerente; desde agosto de 2018 que a ré nada paga à autora.
Termina pedindo que a ação seja julgada procedente por provada e, em consequência, a ré condenada a pagar à autora a quantia global de 27.396,50 € (vinte sete mil trezentos e noventa e seis euros e cinquenta cêntimos), referente às retribuições da gerente, já vencidas, acrescida dos juros de mora legais vencidos, e vincendos, até integral e efetivo pagamento, bem como a pagar à autora todas as retribuições da gerente que se vencerem, na pendência da presente ação, acrescida dos juros de mora legais vencidos, e vincendos, até integral e efetivo pagamento.
Contestando, a ré impugnou a ação, alegando que: até maio de 2019, a autora tinha um vencimento de 1.000,00 € mensais e um subsídio de alimentação variável em função dos dias de trabalho; até ao final de maio de 2019, exercia as funções de assistente de consultório numa clínica da ré sita na …, gerindo as receitas geradas nessa clínica, recebendo os valores das consultas e controlando a caixa; a autora, mensalmente, retirava o valor do seu vencimento da caixa; no final de maio de 2019, a autora deixou de prestar qualquer atividade à ré e recusa-se a assumir os seus deveres de sócia, nomeadamente, recusou-se sempre a avalisar um empréstimo de que a ré necessitava para substituir uma conta caucionada de 40.000,00 € por um contrato de mútuo, como forma de reduzir custos da sociedade; desde essa data, a autora não praticou qualquer ato de gerência, nem presta qualquer serviço à sociedade.
Terminou, pugnando pela improcedência da ação e pedindo a condenação da autora como litigante de má fé.
Após audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, decide-se:
A) Julgar improcedente a exceção de abuso de direito invocada pela Ré;
B) Condenar a Ré no pagamento à Autora da quantia de € 25.189,43 (vinte e cinco mil cento e oitenta e nove euros e quarenta e três cêntimos), sobre a qual incidirão os descontos legalmente previstos, nomeadamente Taxa Social Única e IRS, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos correspondentes, calculados desde 08/09/2020 até integral pagamento, à taxa legalmente aplicável às obrigações civis;
C) Nos termos do artigo 610.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, reconhecer à Autora, relativamente ao exercício de funções de gerência no mês de Setembro de 2020 e nos meses subsequentes, até redução ou extinção das referidas obrigações nos termos do artigo 255.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, ou até que a Autora deixe de ser gerente da Ré, o direito ao recebimento da quantia de € 1.000,00 mensais a título de remuneração de gerência acrescida de € 114,40 também mensais a título de subsídio de alimentação, exigíveis após interpelação nos termos e para efeitos do artigo 806.º, n.º 1, do Código Civil.
D) Julgar improcedente, por não provado, o incidente de litigância de má fé deduzido pela Ré.»
A ré não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1 – Erro de julgamento da matéria de facto
Pela análise criteriosa da prova produzida em audiência de julgamento, mormente, declarações de parte da autora, do sócio gerente da ré e das testemunhas, o tribunal recorrido errou no julgamento da matéria de facto vertida nos pontos 6, 7 e 8 (…), devendo dar-se como provado:
Ponto 6
Aproximadamente no ano de 2000, em data que coincidiu com a abertura da clínica da …, a autora começou a ser remunerada pelas funções que passou a exercer nessa clínica.
Ponto 7
Desde essa data, e por acordo entre os sócios, a Autora passou a exercer funções na clínica da …, competindo-lhe, designadamente, receber pagamentos e prestar assistência aos clínicos.
Ponto 8
Em 2018, o valor da remuneração da autora computava-se em €1.000,00 brutos, acrescidos de subsídio de refeição de valor mensal de €114,40.
2 – O ónus da prova de que a remuneração da autora era uma remuneração de gerência impendia sobre si, o que não logrou provar, nos termos do artigo 342.º do CC.
3 – O tribunal recorrido ao socorrer-se de uma presunção judicial para dar como provado que a remuneração da autora é uma remuneração de gerência, quando essa remuneração podia [ter], como teve, uma fonte diversa da função de gerente, violou o artigo 351.º do CC, primeiro porque a remuneração podia ter duas fontes factuais alternativas, segundo porque, a remuneração de gerência só pode ser provada através de ata consignativa da deliberação – artigo 63.º, n.º 1 do CSC.
4 – Ao ter dado como provado que a autora tinha uma remuneração de gerência, sem que se tenha provado que tenha havido qualquer assembleia dos sócios para deliberar essa remuneração, constitui uma nulidade, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, do CSC, nulidade essa que é invocável a todo o tempo, nos termos do artigo 286.º do CC e que aqui se invoca.
5 - A autora não provou que exercia, de facto, a gerência da sociedade, tendo mesmo reconhecido que a gerência era exercida pelo gerente AB e reconheceu que só passou a ser remunerada pelo exercício de tarefas subordinadas na clínica da …, tais como receber pagamentos e prestar assistência aos clínicos.
6 – O tribunal, ao dar como procedente e provada a presente ação, violou as normas conjugadas dos artigos 255.º, n.º 1, 255.º, n.º 1, 247.º, n.º 1, 54.º, n.º 1, 56.º, n.º 1 e 63.º, n.º 1, todos do Código das Sociedades Comerciais, pelo que deverão V. Exas revogar a sentença recorrida e substituí-la por acórdão pelo qual seja a Ré absolvida, com as legais consequências.
7 – Mas se V. Ex.as entenderem que deve ser mantida a sentença recorrida, nos termos do artigo 619.º, n.º 2, do C.P.C., requer-se que a sentença seja reduzida na sua extensão decisória quanto às prestações a que a Ré venha a ser condenada e que se fixe essa obrigação até à data em que a Autora atinja a idade da reforma.»
A autora contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
A matéria de facto foi mal decidida, justificando-se a sua alteração?
Em consequência (ou mesmo independentemente disso), a aplicação do direito aos factos determina a improcedência da ação?
II. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos que, porquanto explicado em III.1., se mantêm inalterados:
1) A Ré é uma sociedade por quotas registada na Conservatória do Registo Comercial de Almada, com o capital social de €50.000,00, dividido em duas quotas sociais iguais de €25.000,00 cada, pertencentes à Autora e a AB, respetivamente.
2) A Ré tem por objeto social a atividade de prestação de serviços médicos, dentários e de enfermagem e similares e análises clínicas.
3) A Autora e AB são sócios e gerentes da Ré desde a data da sua constituição, em 11/11/1986.
4) A Ré obriga-se com a assinatura de um gerente.
5) A Ré explora duas clínicas médicas, uma na C… e outra na S….
6) Aproximadamente no ano 2000, em data que coincidiu com a abertura da clínica da S…, ambos os sócios da Ré acordaram entre si em remunerar a gerência da Autora.
7) Desde essa data, e por acordo entre os sócios, a Autora passou a exercer funções na clínica da S…, competindo-lhe a gestão diária desta clínica, designadamente receber pagamentos e prestar assistência aos clínicos.
8) Em 2018, o valor da remuneração mensal da Autora como gerente computava-se em €1.000,00 brutos, acrescidos de subsídio de refeição no valor mensal de €114,40.
9) No ano de 2018 a Autora recebeu da Ré o valor bruto de €5.424,07.
10) No ano de 2019 a Autora recebeu da Ré o valor bruto de €5.047,30.
11) A Autora e o sócio-gerente AB casaram no dia 9 de Outubro de 1976, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida pelo Juízo de Família e Menores de Almada – Juiz 1, no processo n.º …/…, transitada em julgado em 25/03/2020.
III. Apreciação do mérito do recurso
1. Impugnação da matéria de facto
O recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, caso em que deverá observar as regras contidas no artigo 640.º do CPC. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: i) os pontos da matéria de facto de que discorda; ii) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, incluindo, quando se trate de meios probatórios gravados, a indicação das exatas passagens da gravação em que se funda o recurso; iii) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Estas normas foram cumpridas pela ré, recorrente nos autos.
No seu recurso, a ré impugnou os factos assentes em 1.ª instância sob os n.ºs 6, 7 e 8, os quais, na sentença, apresentam a seguinte redação (as ênfases são acrescentadas):
6) Aproximadamente no ano 2000, em data que coincidiu com a abertura da clínica da S…, ambos os sócios da Ré acordaram entre si em remunerar a gerência da Autora.
7) Desde essa data, e por acordo entre os sócios, a Autora passou a exercer funções na clínica da S…, competindo-lhe a
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