Acórdão nº 37/22.9GACLB.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 08-11-2023

Data de Julgamento08 Novembro 2023
Ano2023
Número Acordão37/22.9GACLB.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CELORICO DA BEIRA)
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I. RELATÓRIO

1. … foi proferida sentença, em 31-05-2023 [referência30410076], com o seguinte dispositivo (transcrição):

«Isto posto, julgo válida tal desistência, homologando-a por sentença e, consequentemente, declaro extinto o presente procedimento criminal – cfr. artigos 49.º e 51.º do Código de Processo Penal, e 113.º e 116.º do Código Penal.

Sem custas, por não haver assistente constituído, nos termos dos artigos 513.º e 515.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a contrario.

Notifique e deposite – cfr. artigo 372.º, n.º 5, do Código de Processo Penal

2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o Ministério Público.

O recorrente apresentou as seguintes conclusões e petitório (transcrição):

«1. No caso concreto, foi o arguido … acusado da prática de um crime de ameaça agravado, …

2. No início da audiência de discussão e julgamento, a ofendida … veio declarar desistir da queixa apresentada contra o arguido, o que este expressamente aceitou.

3. O Ministério Publico opôs-se à homologação da desistência da queixa.

4. Contudo, o Tribunal a quo proferiu sentença que, considerando revestir tal crime natureza semi-pública, julgou válida a desistência de queixa apresentada pela ofendida, homologando-a e, consequentemente, declarando extinto o presente procedimento criminal contra o arguido.

5. Porém, o Tribunal recorrido não podia ter homologado a desistência de queixa em apreço, dado que o crime de ameaça agravado imputado ao arguido assume natureza pública.

3. Não houve resposta ao recurso.

4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-geral Adjunta, emitiu parecer …

5. Não foi apresentada qualquer resposta a este parecer.

6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso.

Atentas as conclusões formuladas pelo Recorrente, a questão a decidir é a de saber qual a natureza do crime de ameaça, previsto e punido pelos artigos 153º nº1 e 155º nº1 alínea a), ambos do Código Penal – se semipública, como foi considerado na decisão recorrida, se pública, como defende o Recorrente.

2. Da decisão recorrida.

A sentença proferida pelo Tribunal a quo é do seguinte teor (transcrição):

«…

Em nosso entendimento, adiantamos desde já, o crime de ameaça agravada assume natureza semipública, ainda que não se desconheçam posições em sentido contrário.

As razões pelas quais consideramos que a agravação ínsita no artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal, não altera a natureza semipública do crime de ameaça, residem essencialmente nos elementos interpretativos da redação dada ao referido preceito pela Lei n.º 59/2007, de 04/09.

De acordo com o elemento histórico, há que relevar a circunstância de o crime de ameaça ter sempre revestido natureza semipública, …

Na revisão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09 “foram “aglutinadas” no art. 155º as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e coacção, cujas previsões típicas se encontram, respectivamente, nos arts. 153º e 154º, colhendo-se da Exposição de Motivos da Proposta de Lei de alteração do Código Penal ter-se pretendido que o crime de ameaça passasse “a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave”.

Quanto ao elemento teleológico também não encontramos qualquer razão para que a referida agravação implique a mudança da natureza do crime de ameaça.

A razão de ser da distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares, situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger - …

No tipo em causa, os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a autodeterminação, nas suas componentes do direito à tranquilidade e segurança individuais.

Consubstanciam bens de natureza estritamente individual da pessoa ameaçada (ofendida).

Também não se nos afigura que existam, mesmo quando tais bens sejam violados sob a forma agravada, razões de ordem pública e coletiva que imponham ao ofendido o início ou continuação do procedimento penal, quando este o não pretenda.

…»

3. Apreciação do recurso.

Como se disse, a questão em apreciação é a de saber qual a natureza do crime de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153 e 155 nº 1 alínea a) do Código Penal e, nessa medida, a de saber se o respetivo procedimento criminal continua (após a redação dada aos dispositivos em causa pela Lei nº59/2007 de 4 de setembro) a depender de queixa (posição adotada na sentença em recurso) ou, como nada consta do artigo 155º, passou a ser crime público (posição adotada no recurso).

Os entendimentos sobre esta questão subjacentes à decisão em crise e ao recurso, espelham a controvérsia jurisprudencial, onde se podem surpreender duas posições, desde a entrada em vigor daquela lei: uma que defende a natureza semipública do crime de ameaça agravada e outra, que defende que o ilícito em causa passou a ter a natureza de crime público.

Na verdade, é quase unânime este segundo entendimento.

Uma pesquisa na base de dados do IGFEJ (www.dgsi.pt) permite-nos – salvo algum lapso de que nos penitenciamos, desde já – concluir que, dos arestos ali publicados desde 2009 até hoje, apenas dois do Tribunal da Relação do Porto, do mesmo relator, adotam o entendimento de que o crime de ameaça agravada tem natureza semipública, mesmo após a redação dada em 2007, aos artigos 153º e 155º do Código Penal (acórdãos de 13-11-2013 e de 06-04-2022, prolatados no âmbito dos processos nºs335/11.7GCSTS.P1 e 1301/19.0PBAVR.P1, respetivamente).

Todos os restantes acórdãos ali publicados e que conheceram da questão são em sentido contrário:

- Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 17-02-2016 (processo nº509/12.3GBAMT.P1); de 26-11-2014 (processo nº396/12.1PASTS.P1); de 15-06-2016 (processo nº6928/13.0TDPRT.P1); de 12-11-2014 (processo nº883/12.1PAPVZ.P1); de 27-04-2011 (processo nº53/09.6GBVNF.P1); de 02-05-2012 (processo nº284/10.6GBPRD.P1); de 09-01-2013 (processo nº160/11.5GEVNG.P1); de 07-09-2011 (processo nº63/09.3GDSTS.P1); de 26-05-2021 (processo nº775/18.0GBVFR.P1); de 29-09-2010 (processo nº162/08.9GDGDM.P1) e de 15-09-2010 (processo nº354/10.0PBVLG.P1).

- Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-12-2019 (processo nº1325/18.4PBPDL.L1-3); de 31-01-2017 (processo nº190/16.0SXLSB.L1-5); de 03-11-2015 (processo nº178/13.3PASCR.L1-5); de 10-12-2014 (processo nº52/12.0PEPDL.L1-3); de 13-10-2010 (processo nº36/09.6PBRSQ.L1-3); de 30-04-2015 (processo nº64/14.0PAPTS-A.L1-9); de 13-11-2019 (processo nº841/17.0PBPDL.L1-3) ; de 09-07-2020 (processo nº478/15.8PBLRS.L1-9); de 29-10-2020 (processo nº223/19.9PCRGR.L1-9); de 20-03-2018 (processo nº1514/16.6GLSNT.L1-5); de 20-12-2011 (processo nº574/09.0GCBNV.L1-5); de 26-11-2015 (processo nº658/12.8PILRS.L1-9) e de 15-01-2019 (processo nº131/16.5T9PDL.L1-5).

- Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 30-05-2012 (processo...

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