Acórdão nº 3519/22.9YRLSB-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-03-09

Ano2023
Número Acordão3519/22.9YRLSB-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam em conferência os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação

I. RELATÓRIO
1. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto nesta Relação veio promover a execução do Mandado de Detenção Europeu (MDE), emitido pelo Tribunal Regional de Viena, Áustria, para entrega de:
A, de nacionalidade sérvia, nascido a 26/09/1989, natural de Belgrado, actualmente em prisão preventiva à ordem do Proc. n.º 419/22.6JELSB, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, na área deste distrito judicial de Lisboa.
Para o efeito, invocou os fundamentos que em seguida se transcrevem:

O Procurador-Geral Tribunal Regional de Viena, Áustria, com aprovação do juiz do Tribunal Regional de Viena, emitiu, em 25 de Outubro de 2022, um mandado de detenção europeu (MDE) para detenção e entrega de A para efeitos de procedimento criminal, no âmbito do processo n.º 702 St 46/22z-1.5.

O procedimento criminal a correr termos na Áustria tem por objecto factos que, segundo a legislação austríaca, integram infracções de participação numa organização criminosa e de tráfico ilícito de substâncias psicotrópicas, que a autoridade de emissão inclui no campo e) do formulário do MDE, não sujeitas à verificação da dupla incriminação.

O MDE foi transmitido directamente pela autoridade judiciária de emissão a este Tribunal da Relação, que é o competente para a execução, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.

O MDE foi emitido em conformidade com o formulário anexo à Decisão-Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho de 2002, transposta para o direito interno pela Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, e está traduzido em língua portuguesa.

O MDE visa a entrega da pessoa procurada para efeitos de investigação da participação deste em actividade criminosa de tráfico de estupefacientes, de 27 e 28 de Janeiro de 2021, sendo suspeito de ter contribuído para a transferência de 9 kg de cocaína, como membro de uma organização criminosa.

O arguido A, encontra-se actualmente em prisão preventiva à ordem do Proc. n.º 419/22.6JELSB, indiciado pela prática, em co-autoria material e concurso real, de factos que integram a prática de um crime de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa para o tráfico, p. e p., pelos art.º 21.º, n.º 1, 24.º, al. c) e 28.º, todos do D.L. n.º 15/93, de 22-01, por referência à Tabela l-B anexa; de um crime de rapto, p. e p. pelo art.º 161.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal; e de um crime de sequestro, p. e p. pelo art.º 158.º, n.º 1 do Código Penal, correndo os autos os seus termos no DCIAP - Lisboa (Departamento Central de Investigação e Acão Penal) e Tribunal Central de Instrução Criminal TCIC - Juiz 9..
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Procedeu-se à audição do requerido no dia 5 de Dezembro de 2022, neste Tribunal da Relação de Lisboa, tendo o mesmo declarado que se opõe à sua entrega às autoridades austríacas e que não renuncia ao princípio da especialidade.
Foi de seguida proferido despacho que concedeu o prazo de 10 dias para apresentação da oposição, nos termos do artigo 21.º, n.º 3, da Lei n.º 65/2003, bem como determinado que o requerido aguardasse os ulteriores termos mediante TIR, devendo, caso venha a ser entretanto libertado no processo nº 419/22.6JELSB à ordem do qual se encontra detido neste momento, ficar em prisão preventiva à ordem destes autos.
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O requerido veio deduzir a sua oposição, nos termos e com os fundamentos que em seguida se transcrevem:
I. DO CONTEÚDO E FORMA DO MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Num primeiro momento, cabe dizer que o mandado de detenção europeu não é dotado do conteúdo e forma obrigatório estabelecido no art.º 3º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.
Com efeito, estabelece a referida norma, nas suas alíneas d) e e) que o formulário do MDE deve conter, a natureza e a qualificação jurídica da infração, tendo, nomeadamente, em conta o disposto no artigo 2.º da mesma lei, e ainda, a descrição das circunstâncias em que a infração foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação na infração da pessoa procurada. 
Ora, o referido MDE estabelece como legislação aplicável ao processo em investigação o "código penal austríaco", sem precisar a natureza ou a qualificação jurídica da infração.
Como é evidente, o código penal austríaco consubstancia inúmeros crimes, o que não permite ao requerido determinar a qualificação jurídica do crime pelo qual está a ser investigado, como obriga a lei.
Esta falta de concretização também sucede no que toca ao lugar da infração, dizendo-se apenas que a mesma ocorreu na "Áustria", sem mais se precisar.
Porém, a falta de concretização deste MDE passa para um nível gritante quando, na descrição das circunstâncias em que terá ocorrido a infração, apenas se diz que o requerido é suspeito de ter contribuído para a transferência de 9kg de cocaína e pertencer a uma organização criminosa.
Ora, salvo o devido respeito, isto nem sequer é um facto, é uma mera conclusão, que poderá (ou não) resultar que factos que a alicercem, no entanto, esses são desconhecidos ao requerido!
Impõem-se a concretização dos mesmos, tal como resulta da própria letra da lei.
Não se especifica de que modo, em que sitio ou qual a contribuição do requerido para tal transferência de cocaína.
Deste modo, nem sequer é possível ao requerido concretizar se o MDE emitido consubstancia factos que constituem uma infração punível pela lei portuguesa, o que se afigura absolutamente indispensável, uma vez que o art.º 2º nº 3 da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, faz depender a entrega da pessoa procurada desse mesmo requisito.
Também não é possível alcançar do referido MDE quais as diligências que se pretendem realizar com a transferência do requerido.
Com efeito, não se determina qual a pretensão da detenção do arguido, nomeadamente, se a pretensão é que seja ouvido por um juiz, por outra autoridade judiciária, ou um órgão de polícia criminal.
Aliás, não se determina sequer se aquilo que se pretende efetivamente é continuar a investigar o requerido!
De qualquer modo, se assim for afigura-se necessário recorrer a um juízo de proporcionalidade, na medida em que existem várias medidas previstas nos instrumentos jurídicos da União de cooperação judiciária em matéria penal, com base no princípio do reconhecimento mútuo, que completam o MDE, tal como a decisão europeia de investigação.
Em fase de investigação sempre deverá ser ter-se em consideração, através da emissão de uma DEI, as seguintes medidas que se demonstram, com o devido respeito, mais proporcionais e adequadas:
• proceder-se à audição do requerido, através de meios de comunicação à distância, como bem assim, desta forma, realizar todas as diligências que se entendam por convenientes;
• proceder-se à audição do requerido, em Portugal, pelas autoridades competentes para esse efeito.
Tal solução, para além de evitar esforços e diligências a nível internacional, permitirá que o arguido continue a cumprir as suas obrigações processuais em Portugal, no âmbito do processo nº 419/22.6JELSB., nomeadamente, o cumprimento da pena de prisão em que o mesmo, com grande probabilidade, será condenado, como permite igualmente, colaborar com o processo-crime que originou a emissão de tal MDE.
De qualquer modo, o MDE em causa não cumpre os requisitos formais expressamente estipulados na lei, nomeadamente nos art.ºs 2º e 3º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.
O conteúdo e forma do MDE, regulados no art.º 3.º da referida lei, impõem a transmissão de um elenco de informações cuja existência é conditio sine qua non de apreciação da sua regularidade formal e substancial em sede de despacho liminar,( cf. art.º 16º da referida lei), e absolutamente essencial no que toca ao exercício dos direitos de defesa do arguido (consagrados no art.º 17º da mesma lei).
Não sendo a ausência de tais requisitos causa de recusa obrigatória ou de recusa facultativa, previstas, respetivamente, nos arts. 11.º e 12.º da mesma lei, deverá o presente MDE ser recusado.
Este tal qual como se encontra redigido, não permite sequer ao requerido discutir os motivos de não execução do mandado de detenção europeu, uma vez que a concretização dos factos é fundamental ao exercício do direito de recusa, seja ela obrigatória ou facultativa – art.ºs 11º e 12º da referida Lei.
Relevando-se essencial, nomeadamente, para efeitos de apreciação de amnistia, do princípio ne bis in idem, do decurso dos prazos de prescrição, da renúncia ao princípio da especialidade, do princípio da territorialidade, entre outros.
Em conclusão, e face à ausência dos requisitos estipulados nos art. e da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto deverá o referido MDE ser recusado por ausência dos requisitos formais e violação dos direitos de defesa do requerido, consagrados no art.º 32º da CRP.
II. DA PENDÊNCIA DE PROCESSO-CRIME EM PORTUGAL
Para além dos argumentos supra expostos, e tal como é do conhecimento oficioso deste Tribunal, o requerido encontra-se preso preventiva mente no Estabelecimento Prisional de Lisboa, à ordem do Processo n.º 419/22.6JELSB, que corre termos no DCIAP.
O requerido surge, no âmbito desse processo, indiciado pela prática, em co-autoria material e concurso real, de factos que integram a prática de um crime de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa, p. e p., pelos art.º 21.º, n.º 1, 24.º, al. c) e 28.º, todos do D.L. n.º 15/93, de 22-01, por referência à Tabela 1-B anexa, um crime de rapto, p. e p. pelo art.º 161.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal.
Estes são crimes de elevada gravidade que, certamente, levarão à acusação, e consequente, condenação do requerido em território nacional português.
Assim, pretende o requerido ser submetido à apreciação e cuidado da justiça portuguesa, fazendo uso das garantias de defesa que a nossa lei oferece.
E, desse modo, ver concluído o respetivo procedimento criminal que motivou a sua prisão
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