Acórdão nº 316/03.4GBPMS.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 10-04-2024

Data de Julgamento10 Abril 2024
Ano2024
Número Acordão316/03.4GBPMS.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS))
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Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


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A - Relatório:

1. Nos Autos de Processo Comum (Tribunal Singular) que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Porto de Mós,, em 2/10/2023, foi proferido o seguinte Despacho:

A Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, Lei do Perdão de penas e amnistia de infrações, entrou em vigor no recente dia 01 de Setembro de 2023.

A prática do ilícito objeto da Acusação deduzida reporta-se a 30.08.2003 e o arguido AA, nascido em ../../1980, tinha entre 16 e 30 anos àquela data – cfr. o artigo 2.º, n.º1: «estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º».

O Arguido foi acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, correspondendo-lhe a moldura abstrata aplicável de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.

Com relevância para o presente caso, há que ter presente que «são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa» (cfr. o artigo 4.º).

Por outro lado, «não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: ii) Crimes de (…) condução de veículo em estado de embriaguez (…), previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal» (cfr. o artigo 7.º, n.º1, d)).

No seguimento do Despacho proferido em 13.09.2023, a Digna Magistrada do Ministério Público, em Promoção de 28.09.2023, verteu entendimento segundo o qual, “o Ministério Público entende que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez não se encontra amnistiado pela Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto”.

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In casu, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, o crime objeto dos presentes autos é elegível para ser alvo da amnistia prevista no artigo 4.º da Lei sob apreço.

Da leitura do, também, citado artigo 7.º, em concreto do seu n.º1, d), ii), decorre a exclusão dos «condenados» pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Em caso, como o dos presentes autos, em que o Arguido foi julgado, porém a Sentença condenatória ainda não transitou em julgado, nem sequer tendo sido dela notificado, entender que não pode haver lugar à amnistia da infração por força daquela exceção exige – salvo melhor entendimento, que se admite e respeita, tanto mais no quadro de uma Lei recente como é esta –, uma interpretação contra a própria letra da lei, senão mesmo contra o seu espírito, que se refere, explicitamente, a «condenados».

Uma tal interpretação – contra, pelo menos, a própria letra da lei, senão também contra o seu espírito –, poderá ser defendida argumentando que a ideia do Legislador foi excluir de todo o crime de condução de veículo em estado de embriaguez das medidas de graça concedidas por esta Lei, e que a menção a «condenados» se tratou, por isso, de um lapso de escrita.

Contudo, uma tal interpretação – contra a letra da lei, senão também contra o seu espírito – parece olvidar a diferença entre estas duas medidas de graça – a amnistia e o perdão –, na sua natureza e nas suas consequências.

Deste modo, em sentido contrário uma tal interpretação, pode contrapor-se que, justamente, foi intenção do Legislador, relativamente ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, amnistiar as situações em que não há, ainda, uma condenação transitada em julgado, porém já não admitir o perdão das penas aplicadas por uma sentença transitada em julgado.

Nesta ordem de ideias, a menção a «condenados» foi pretendida pelo Legislador, que, então, admitiu, diante do plasmado no artigo 4.º, a amnistia da condução de veículo em estado de embriaguez quando ainda não tenha havido uma condenação transitada em julgado.

Afinal, é princípio constitucionalmente consagrado que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação» (cfr. o artigo 32.º, n.º2 da C.R.P.).

Por conseguinte, uma tal interpretação contrária à (letra e espírito desta) Lei – que se refere apenas e expressamente a «condenados» – afigura-se-me, com o devido respeito por opinião diversa, ser, igualmente, contrária e, mesmo, violadora daquele princípio constitucional, porquanto implica um tratamento dos (presumidos) inocentes como se de condenados (por sentença transitada em julgado) já se tratassem.

Por todo o exposto, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, e ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º1 e 128.º, n.º2 ambos do Código Penal, declaro amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado nos presentes autos e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal.

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Notifique.

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Oportunamente, e sem olvidar o disposto do artigo 11.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, diligencie pela inscrição da presente Decisão no registo criminal do Condenado (cfr. art.º 6.º, al. f), da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio).”

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2. Inconformado, recorreu o Ministério Público, em 7/11/2023, extraindo da Motivação as seguintes Conclusões:

A. Nos presentes autos o arguido AA, nascido em ../../1980, foi acusado pela prática em 30.08.2003 (para além do demais), do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal;

B. Em 01.09.2023 entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto que consagra no seu artigo 2.º, n.º 1 que “estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”; e no seu artigo 4.º que “são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”;

C. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas encontra-se previsto no artigo 292.º do Código Penal que consagra no seu n.º 1 que “Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”

D. Ora, considerando-se a data dos factos: 30.08.2003, logo anteriores a 19.06.2023, e a idade do arguido à data da prática dos mesmos: 23 anos de idade, o Tribunal a quo decidiu que por Despacho proferido em 02.10.2023 que “Por conseguinte, uma tal interpretação contrária à (letra e espírito desta) Lei – que se refere apenas e expressamente a «condenados» – afigura-se-me, com o devido respeito por opinião diversa, ser, igualmente, contrária e, mesmo, violadora daquele princípio constitucional, porquanto implica um tratamento dos (presumidos) inocentes como se de condenados (por sentença transitada em julgado) já se tratassem. Por todo o exposto, atenta a moldura abstrata aplicável ao crime sub judice, e ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, conjugado com o disposto nos artigos 127.º, n.º1 e 128.º, n.º2 ambos do Código Penal, declaro amnistiado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 69.º, n.º 1, al. a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal, de cuja prática o arguido AA se encontra acusado nos presentes autos e, por conseguinte, extinto o presente procedimento criminal”;

E. Salvo melhor entendimento, não se antolhe arrimo a este entendimento porquanto ainda que em face da excecionalidade deste direito de graça/clemência não se possa ‘lançar mão’ de uma interpretação analógica, extensiva ou restritiva, a verdade é que desde logo o artigo 9.º do Código Civil impõe-se ao Aplicador da Lei efetuar uma correta interpretação declarativa das normas, e não bastar-se com a mera letra da lei;

F. Foi no artigo 7.º da referida Lei que o Legislador elencou os crimes que considerou incluídos na criminalidade muito grave, e entre eles está o crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º do Código Penal, mais concretamente no n.º 1, alínea d), ii);

G. É certo que o Legislador consagrou nesta norma o seguinte texto: “1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: (…) ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal” (sublinhados nossos), mas em nosso entendimento o vocábulo ‘condenados’ usado no texto legal não poderá ser lido de forma meramente literal, desenquadrado de todo o demais texto legal, preâmbulo e exposição de motivos;

H. É que o artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto foi «decalcado» da Lei n.º 9/2020, de 10.04, que fixou o regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, o qual apenas visou a aplicação de perdão, e não de...

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