Acórdão nº 31/22.0GGCBR.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2023-09-13

Ano2023
Número Acordão31/22.0GGCBR.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 3)
Acordam, em conferência, os Juízes da 4ª secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório

1. … o Ministério Público proferiu despacho de acusação contra os arguidos AA e BB, nele lhes imputando a prática, em autoria material ( singular ), sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nºs 1, alínea b), 2, al. a), 4 e 5 do Código Penal.


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2. Inconformada, veio a arguida BB, requerer a abertura da instrução pugnando pela prolação de despacho de não pronúncia em relação à mesma.

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3. Admitida a abertura da instrução assim requerida, foi no decurso da mesma unicamente realizado o debate instrutório …, vindo, …, a ser proferida decisão de não pronúncia em relação a ambos os mencionados arguidos.

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4. Inconformada com tal decisão, dela veio interpôr recurso o Ministério Público, pugnando nas conclusões do respectivo requerimento de interposição do recurso, …

“…

2.ª - O crime de violência doméstica pode ser praticado reciprocamente por ambos os sujeitos/arguidos, nomeadamente, quando os actos são cometidos na mesma ocasião e não apenas em momentos divergentes, desde logo porque o elemento literal não o exclui.

3.ª - Para que se verifique a existência do crime de violência doméstica, não se mostra necessário que exista uma relação de domínio ou de subjugação de um dos arguidos relativamente ao outro.

4.ª - O bem jurídico no crime de violência doméstica é plural e complexo e abrange a protecção da dignidade humana e quando as condutas afectam a dignidade pessoal e individual do cônjuge, namorado, companheiro… o crime verifica-se.

5.ª - O facto de ambos os arguidos atentarem contra a dignidade do outro não tem a virtualidade para excluir e afastar a censurabilidade da própria conduta.

6.ª - As condutas imputadas a ambos os arguidos são de uma intensidade e gravidade bastante, as quais apenas poderão ser subsumíveis ao crime de violência doméstica.

…”


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5. O recurso foi admitido.

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6. Cumprido o disposto no art. 411º, nº6 do CPP, apenas respondeu ao recurso a arguida BB, fazendo apelo na respectiva contra-motivação, ao que resulta da leitura conjugada dos autos, …:

“…

II. O crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade.

III. Para que exista crime de violência doméstica é necessário a existência de uma vítima e de um vitimador.

IV. Os factos não preenchem o tipo de ilícito em causa, por não ter sido atingido o bem jurídico lesado, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugaçãoe submissão atingindo a dignidade da pessoa humana de um dos arguidos em relação ao outro.

…”


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7. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no qual, subscrevendo a argumentação esgrimida pelo Sr. Procurador da República junto do Tribunal de 1ª instância, considera que o recurso tem condições para ser julgado procedente, designadamente porque as condutas de cada um dos arguidos, ou pelo menos algumas delas, de inegável cariz atentatório da dignidade humana, estão desfasadas temporalmente, o que lhes retira o carácter de reciprocidade, colocando a(s) vitima(s) numa situação de inferioridade relacional, em cada um desses momentos.


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II- Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente Ministério Público, a questão a decidir é a de saber se existem indícios da prática pelos arguidos do crime de violência doméstica que lhes vem imputado na acusação.


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B) Da decisão recorrida

Vejamos, então, o teor da decisão recorrida, que, na parte relevante para apreciação do recurso, se transcreve:


I

Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o Ministério Público deduziu acusação contra:

1. AA,

2. BB, …

imputando-lhes a prática, respectivamente, em autoria material (singular), sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al b), 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal, ….


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Discordando da douta acusação pública, requereu a arguida BB a abertura da instrução, pugnando pela suspensão provisória do processo, ….

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II


Da finalidade da instrução:


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Da prova produzida em sede de inquérito e de instrução:

Na fase processual de inquérito, foram coligidos nos autos, designadamente, os seguintes elementos documentais:

- Fotografias, a fls. 93 a 106;

- Certificados do registo criminal, a fls. 8 e 227; - Relatório, a fls.185 a 192.

Inquiriram-se as testemunhas:

Foram constituídos e interrogados como arguidos:

Na presente fase processual, não foram levadas a efeito diligências probatórias.


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Da suficiência ou insuficiência de indícios da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança:

Do imputado crime de violência doméstica:

Dos elementos probatórios carreados para os presentes autos e supra enunciados, destacando-se as declarações prestadas por cada um dos simultaneamente arguidos e ofendidos, , parcialmente corroboradas pelos depoimentos das testemunhas …, e atendendo, ainda, ao teor dos autos de notícia, das fotografias, a fls. 93 a 106, e do relatório, a fls.185 a 192, podemos afirmar que existem indícios dos seguintes factos narrados na douta acusação pública:

1 – Os arguidos, AA e BB iniciaram uma relação de namoro em 2016;

2 – Passando a coabitar em 2019, na Rua ..., em ..., nesta cidade;

3 – Com a coabitação surgiram os primeiros episódios de conflito e confronto;

4 – Com efeito, a arguida BB, no interior da casa de morada de família apelidou, por diversas vezes, AA de putanheiro, porco de merda, mulherengo, pessoa ruim;

5 – E, em tom sério, disse-lhe: “tens os cornos assentes! tu não prestas, ninguém gosta de ti, nem os teus filhos”;

6 – “Um destes dias mato-te”;

7 – Para além disso, a arguida BB, de forma a denegrir a imagem de AA, diz aos amigos e colegas de trabalho daquele que “é um putanheiro”;

8 – A 21 de Fevereiro de 2022, AA disse à arguida BB que pretendia terminar a relação e, consequentemente, que esta abandonasse a casa de morada de família;

9 – Porém, a arguida BB, não acatando tal, começou a partir vários objectos em casa, nomeadamente louça;

10 – Ademais, a arguida BB colocou no lixo roupa de cama, cortinados e edredons pertencentes a AA;

11 – E rasgou o papel de parede e sempre com o propósito de o humilhar;

12 – No dia 21 de Abril de 2022, data em que em saiu de casa, a arguida BB desferiu com violência diversos pontapés no portão da habitação;

13 – Em data não concretamente apurada do ano de 2020, o arguido AA agarrou com força os braços de BB;

14 – E colocou-a na rua;

15 – Cerca de 3 ou 4 vezes, o arguido AA, de forma autoritária levantou a mão à ofendida BB, com o propósito de a intimidar;

16 – O arguido AA, por diversas vezes, apelidou a vítima BB de ladra, porca e fraca;

17 – E disse-lhe que ela tem amantes e que dá a cona mas que ninguém a quer;

18 – Em data não concretamente apurada, o arguido AA tentou forçar a vítima BB a manter sexo anal contra a vontade desta;

19 – Os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e conscientemente.

…, a indiciada factualidade não preenche o tipo legal de crime em causa, por não ter sido atingido o bem jurídico tutelado pela violência doméstica, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugação e submissão, atingindo a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro, antes se estando perante duas pessoas que vivem em situação análoga à conjugal e mutuamente se insultam, em uma situação de paritário conflito: a arguida, no interior da casa de morada de família, apelidou, por diversas vezes, o co-arguido de putanheiro, porco de merda, mulherengo pessoa ruim e disse-lhe: “tens os cornos assentes! tu não prestas, ninguém gosta de ti, nem os teus filhos”, e disse aos amigos e colegas de trabalho daquele que ele é um putanheiro; o arguido chama a companheira de “ladra, porca e fraca” e diz-lhe “que ela tem amantes” e que “dá a cona mas que ninguém a quer”; bem como se agridem fisicamente e às respectivas liberdades: o arguido agarrou com força os braços da co-arguida e colocou-a na rua; levantou a mão à co-arguida com o propósito de a intimidar e tentou forçá-la (de modo concreto que se desconhece) a manter sexo anal contra a vontade desta; a arguida disse ao co-arguido “um destes dias mato-te”; partiu vários objectos em casa, nomeadamente, louça e colocou no lixo roupa de cama, cortinados e edredons pertencentes àqueloutro e rasgou o papel de parede; desferiu diversos pontapés no portão da habitação.

Os comportamentos dos arguidos surgem, pois, como equivalentes na perspectiva da sua censurabilidade, nenhum deles logrando alcançar uma posição de efectivo domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem se distinguindo, um como vítima e o outro como agressor.

Não se indicia, assim, a seguinte factualidade:

“- Os arguidos actuaram desrespeitando-se e menorizando-se reciprocamente, ofendendo-se reciprocamente na honra e consideração bem sabendo que tinham o dever acrescido de se respeitar mutuamente;

- Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e mesmo assim, não se abstiveram de as levar a cabo”.


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Em conclusão, não se descobre uma razoável probabilidade de uma futura condenação dos arguidos, em sede de julgamento, pelos factos que lhes são imputados na douta acusação pública e com a respectiva qualificação jurídica.

Restará, pois, concluir pela não pronúncia de ambos os arguidos, estendendo-se a mesma, pelo entendimento supra expendido, ao arguido não requerente da instrução, visto o preceituado no art.º 307.º, n.º 4, do Cód. de Processo Penal.


*

III


DECISÃO:

Pelo exposto, não pronuncio os arguidos:

1.

2.

pela prática dos factos que lhes são imputados na acusação, susceptíveis de, alegadamente, os constituírem autores materiais, respe...

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