Acórdão nº 3039/19.9T9LSB-A.L1-PICRS de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-11-09

Ano2022
Número Acordão3039/19.9T9LSB-A.L1-PICRS
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.Relatório


O Ministério Público recorreu do despacho proferido pela Juíza de Instrução Criminal no processo contraordenacional n° PRC/2019/2 instaurado por despacho do Conselho da Autoridade da Concorrência, de 14 de Março de 2019, pelo qual foi declarada a nulidade da apreensão de todos os e-mails recolhidos na sede das requerentes no decurso das diligências de busca e apreensão realizadas em Maio de 2019.

O referido despacho recaiu sobre os requerimentos apresentados por “Lusíadas, S.A.”, “Lusíadas, SGPS, S.A.”, “Luz Saúde, S.A.”, “José de Mello Saúde, S.A.”, “Hospital Particular do Algarve, S.A.” e “G.T.S. - Grupo Trofa Saúde, SGPS, S.A.”, visadas no processo contraordenacional n° PRC/2019/2 da Autoridade da Concorrência, tendo a Juíza de Instrução Criminal fundamentado a sua decisão nos seguintes termos:

«(...) Analisando a Lei 19/2012, de 8 de maio, art. 18.°, n°l, al. c), na sequência de busca validamente autorizada e realizada, a Autoridade da Concorrência pode proceder à apreensão de documentos, em qualquer suporte designadamente digital, que se encontrem nas instalações da sociedade arguida ou até acessíveis a partir da mesma, por se encontrarem remotamente alojados em servidores externos.
No entanto, documento digital e e-mail são claramente conceitos legais distintos, como resulta patente dos arts. 16.° e 17.° da Lei 109/2009 de 15 de setembro, sendo em absoluto irrelevante perante tais normas legais se os e-mails ou mensagens de natureza semelhante foram ou não abertas pelo seu destinatário, o que aliás não pode tecnicamente ser determinado, porquanto uma mensagem pode surgir como aberta num dispositivo e não aberta noutro.
Entende-se assim que a equiparação que o Ministério Público pretende fazer é ilegítima, devendo todos os e-mails apreendidos ser classificados como correspondência eletrónica, definida como tal no art. 17.° da Lei do Cibercrime.
Uma vez que nos encontramos no âmbito de ilícito contraordenacional tal apreensão não é permitida nos termos do art. 42.° n°l do DL n° 433/82, de 27 de outubro e não foi autorizada pelo Juiz de Instrução, tratando-se de ingerência ilegítima da autoridade administrativa no sigilo das telecomunicações, pelo que se declara a nulidade da apreensão de todos os e-mails recolhidos na sede das requerentes, os quais após trânsito devem ser destruídos. (...)»

No seu recurso, o Ministério Público formulou, após motivação, as seguintes conclusões:

1.O processo contraordenacional n° PRC/2019/2 foi instaurado por despacho do Conselho da Autoridade da Concorrência, de 14 de março de 2019, dada a existência de indícios de práticas restritivas da concorrência que infringem o disposto nas alíneas a), b) e c), do n°1, art. 9.°, da Lei n°19/2012, de 8 de maio, punível nos termos da alínea a), do n°1, do art. 68.°, do mesmo diploma legal, envolvendo sociedades do setor da prestação de serviços na área da saúde.

2.No âmbito do referido processo contraordenacional, considerando a necessidade de aquisição e recolha de elementos de prova de tais comportamentos — atenta a complexidade dos factos ilícitos em apreço e a especial dificuldade da obtenção da respetiva prova, bem como o risco para a investigação decorrente da utilização de outro tipo de meios de obtenção de prova —, a requerimento da Autoridade da Concorrência, por despacho do Ministério Público foi autorizada a realização de buscas nas instalações de “Lusíadas, S.A.”, “Lusíadas, SGPS, S.A.”, “Luz Saúde, S.A.”, “José de Mello Saúde, S.A.”, e “G.T.S. - Grupo Trofa Saúde, SGPS, S.A.”, tendo em vista o exame, recolha e apreensão de cópias ou extratos da escrita e «demais documentação, designadamente mensagens de correio eletrónico e documentos internos de reporte de informação entre as visadas, bem como atas de reuniões de administração e direção, quer se encontrem ou não em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, incluindo em quaisquer suportes informáticos ou computadores, que estejam direta ou indiretamente relacionados com práticas restritivas da concorrência, e exame e cópia da informação que contiverem».

3.No dia 10 de maio de 2019 foram iniciadas as diligências de busca e apreensão nas sedes e instalações das empresas visadas, as quais se prolongaram nos dias subsequentes.

4.As buscas foram efetuadas por funcionários da Autoridade da Concorrência devidamente credenciados e realizadas na presença de quem se apresentou como sendo responsável da sociedade visada, após ter sido indicada a finalidade e a entidade visada com a busca.

5.Foram entregues às pessoas que se apresentaram como representantes da sociedade buscada cópias dos mandados e dos despachos que determinaram a realização das buscas, bem como dos respetivos autos de busca e apreensão.

6.No decurso das referidas diligências vieram ser copiados ficheiros informáticos considerados relevantes para a prova das infrações, procedendo-se à transferência dos ficheiros selecionados para um outro suporte informático que seria objeto de apreensão.

7.Todos os documentos e ficheiros apreendidos foram devidamente identificados nos autos de busca, em função do local onde foram encontrados e dos descritivos que ostentavam, de modo a serem reconhecidos e apresentados para posterior consulta.

8.De acordo com o Código de Processo Penal vigente (aplicado subsidiariamente), os atos que na lei processual penal não estiverem cometidos ao Juiz de Instrução cabem ao Ministério Público (art. 267.°, do CPP), designadamente a busca na sede de pessoa coletiva.

9.A emissão dos mandados de busca e apreensão requeridos pela Autoridade da Concorrência competia ao Ministério Público, uma vez que a situação em apreço não se enquadrava na previsão dos arts. 174.° e 177.°, do Código de Processo Penal, e, nessa exata medida, não careciam da intervenção do Juiz de Instrução.

10.O regime aplicável aos processos contraordenacionais será sempre, em primeiro lugar, a legislação especial que exista sobre a matéria em causa, isto é, o diploma específico que atribui competências sancionatórias a uma concreta autoridade administrativa e que prevê os ilícitos contraordenacionais ou de mera ordenação social.

11.Estando em causa práticas restritivas de concorrência, o regime aplicável é claramente o estatuído na Lei n° 19/2012, de 8 de maio, que no seu art.20.°, n°l, autoriza expressamente a apreensão de documentos independentemente da sua natureza ou do seu suporte».

12.Dos elementos disponíveis nos autos não resultam quaisquer dados que nos permitam concluir pela apreensão de correspondência, mas antes e apenas de documentos lidos e arquivados em suporte digital.

13.Na sua essência, a mensagem mantida em suporte digital depois de recebida e lida terá a mesma proteção da carta em papel que tenha sido recebida pelo correio e que foi aberta e guardada em arquivo pessoal.

14.Assim, tratando-se de meros documentos, estas mensagens não gozam da aplicação do regime de proteção da reserva da correspondência e das comunicações.

15.Nesta conformidade, a interpretação expressa no despacho recorrido (no sentido de que no direito contraordenacional não é admissível qualquer ingerência das autoridades administrativas na correspondência, proibição esta extensível aos processos da competência da Autoridade da Concorrência) não se coaduna com o texto das normas aplicáveis ao caso em apreço, assim infringindo, por erro de interpretação, a previsão dos arts. 13.° e 20.°, n°l, da Lei 19/2012, de 8 de maio.

Termina pedindo que a decisão seja revogada e substituída por outra que considere que as diligências efetuadas no âmbito do processo contraordenacional PRC/2019/2 não enfermam de qualquer nulidade ou irregularidade que afecte a validade das buscas e dos documentos apreendidos.

A Autoridade da Concorrência (AdC) recorreu também do despacho proferido pelo Juízo de Instrução no processo contraordenacional n° PRC/2019/2, concluindo o seguinte:

A.O presente recurso deve ser distribuído à Seccão de Propriedade Intelectual Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos conjugados do n,° 5 do artigo 67.° e do artigo 112.° da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

OBJETO, MOMENTO E EFEITO DO RECURSO

B.O presente Recurso vem interposto do despacho do JIC que, sem assegurar o exercício do contraditório pela AdC, considerou que a apreensão de correio eletrónico pela Autoridade da Concorrência (“AdC”) “não é permitida nos termos do art. 42.°n.°1 do DL n,° 433/82, de 27 de outubro e não foi autorizada pelo Juiz de Instrução, tratando-se de ingerência ilegítima da autoridade administrativa no sigilo das telecomunicações, pelo que se declara a nulidade da apreensão de todos os emails recolhidos na sede das requerentes, os quais após trânsito devem ser destruídos".

C.A AdC não pode conformar-se com o referido despacho, porquanto este constitui uma errada aplicação da alínea c) do n.° 1 e do n.° 2 do artigo 18.° da Lei da Concorrência, bem como dos artigos 16,° e 17.° da Lei do Cibercrime, do artigo 177.° do CPP e do artigo 42.° do RGCO, impondo-se que aquele seja revogado e substituído por outro que faça uma correta aplicação das normas legais, no sentido de concluir pela admissibilidade de apreensão de correspondência eletrónica lida/ aberta.

D.Apenas a revogação do despacho recorrido, e consequente substituição da decisão por outra que determine a admissibilidade da prova apreendida, permitirá à AdC prosseguir as diligências de inquérito no PRC/2019/2 para o seu posterior encerramento com eventual notificação às Visadas de nota de ilicitude, nos termos da alínea a) do n.° 3 do artigo 24.° da Lei da Concorrência.

E.Impõe o n.° 1 do artigo 407.° do CPP a subida imediata do presente recurso
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