Acórdão nº 301/21.4YHLSB.L1-PICRS de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-03-23

Ano2022
Número Acordão301/21.4YHLSB.L1-PICRS
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam em conferência, na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, do Tribunal da Relação de Lisboa



1.–A autora/recorrente, propôs junto ao Tribunal da Propriedade Intelectual, a presente acção declarativa, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º da Lei 62/2011 de 12 de Dezembro (Lei 62/2011), com base na publicação, pelo INFARMED – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (INFARMED, I.P.), de um pedido de três Autorizações de Introdução no Mercado (AIM) de medicamentos genéricos, pela ré, sendo a autora titular do direito às patentes e/ou dos certificados complementares de protecção dos medicamentos de referência.

2.–Citada a ré/recorrida, a mesma não contestou.

3.–O Tribunal a quo, cumprido o disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil (CPC), proferiu decisão a julgar verificada a exceção de falta de interesse processual em agir e absolveu a ré da instância.

4.–É dessa decisão que a autora vem interpor recurso para o Tribunal da Relação, pedindo que seja revogada a decisão do Tribunal a quo que absolveu a ré da instância com as legais consequências.

5.–Na argumentação das alegações de recurso, vertida nas conclusões, a autora invoca, em síntese, o seguinte: para que os titulares das patentes e/ou de certificados complementares de protecção dos medicamentos de referência gozem da tutela judicial conferida pela Lei n.º 62/2011 basta a publicitação do pedido de AIM dos medicamentos genéricos, independentemente de qualquer infracção ou ameaça iminente de infracção aos seus direitos de propriedade industrial.

6.–A ré/recorrida, não contra-alegou, tendo junto procuração a mandatário judicial.

Delimitação do âmbito do recurso

7.–Tem relevância para a decisão do recurso uma única questão, a seguir enunciada:

A.O interesse em agir no regime de composição dos litígios emergentes de direitos de propriedade industrial em que estão em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos: Lei 62/2011 de 12 de Dezembro

Com relevo para a decisão este Tribunal usa os seguintes factos

8.–A autora intentou a presente acção declarativa ao abrigo da Lei 62/2011 (conforme petição inicial que aqui se dá por reproduzida, com a referência Citius 90733) pedindo a condenação da ré a:

a)-Abster-se de importar, armazenar, fabricar, manipular, embalar, colocar em circulação, vender ou pôr à venda, directa ou indirectamente, quer em Portugal, quer para exportação, os medicamentos genéricos constantes das A.I.M.’s em causa nos presentes autos, até à caducidade do CCP 346, EP 1411932, EP 1689370, EP 1720866, EP 1845961, EP 2099453, e respectivo CCP 883, objecto da presente acção;
b)-Abster-se de importar, armazenar, fabricar, manipular, embalar, colocar em circulação, vender ou pôr à venda, directa ou indirectamente, quer em Portugal, quer para exportação, qualquer medicamento contendo a substância activa “RIVAROXABANO”, até à caducidade do CCP 346, objecto da presente acção;
c)-Abster-se de importar, armazenar, fabricar, manipular, embalar, colocar em circulação, vender ou pôr à venda, directa ou indirectamente, quer em Portugal, quer para exportação, qualquer medicamento contendo a substância activa “RIVAROXABANO”, utilizado em conformidade com o âmbito de protecção das EP 1411932, EP 1689370, EP 1720866, EP 1845961, EP 2099453, e respectivo CCP 883, objecto da presente acção, até à caducidade dos referidos direitos;
d)- Não transmitir a terceiros as A.I.M.’s em causa nos presentes autos, até à caducidade das patentes e CCPs objecto da presente acção;
e)-Pagar uma sanção pecuniária compulsória, à razão diária de € 35.000, por cada dia de importação, armazenamento, fabrico, manipulação, embalamento, colocação em circulação e a venda, directa ou indirectamente, quer em Portugal, quer para exportação, de qualquer produto farmacêutico contendo a substância activa “RIVAROXABANO”, em infracção dos direitos de propriedade industrial da Autora e em caso de eventual incumprimento da condenação que vier a ser proferida de acordo com os pedidos supra indicados, nos termos do artigo 829.º-A do Código Civil

9.–Invocou, em síntese, como fundamentos da sua pretensão:
  • A autora é titular de cinco patentes e dois certificados complementares de protecção dos medicamentos de referência contendo Rivaroxabano;
  • Em 29 de Junho de 2021, foram publicados na página do INFARMED, três pedidos apresentados pela ré, de AIM de medicamentos genéricos contendo a substância protegida pelas patentes e certificados complementares de protecção de que é titular a autora;
  • Os pedidos de AIM foram apresentados com uma antecedência que varia de três a sete anos, em relação ao termo de vigência dos direitos de propriedade industrial da autora, prevendo a lei a caducidade das AIMs na falta de comercialização efectiva durante três anos consecutivos, por qualquer motivo fora dos previstos no artigo 77.º n.º 4 do Estatuto do Medicamento;
  • A autora não concedeu à ré autorização para exploração desses medicamentos;
  • O pedido de AIM não constitui uma infracção aos direitos de propriedade industrial, gozando a autora da tutela judiciária conferida pela Lei 62/2011, ao abrigo da qual intenta a presente acção;
  • Em caso de comercialização dos medicamentos genéricos pela ré antes de expirados os direitos de propriedade industrial da autora, esta sofreria prejuízos resultantes da diminuição de vendas do medicamento de referência;
  • Para assegurar que a ré acatará a decisão que venha a ser proferida nestes autos deve ser fixada uma sanção pecuniária compulsória ao abrigo do disposto no artigo 829.º A do CPC.

10.–A ré citada não contestou (cf. referências Citius 452379 e 91181).

11.–O Tribunal a quo proferiu decisão que aqui se dá por reproduzida, que pôs termo ao processo, julgando verificada a exceção de falta de interesse em agir da autora e absolvendo a ré da instância, (cf. referência Citius 463327).

12.–A autora interpôs recurso desta decisão, cujas alegações e conclusões se dão por reproduzidas (cf. referência Citius 95672).

13.–A ré não contra-alegou e juntou procuração a mandatário judicial (cf. referência Citius 95998)

Apreciação do recurso

A.O interesse em agir no regime de composição dos litígios emergentes de direitos de propriedade industrial em que estão em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos: Lei 62/2011 de 12 de Dezembro

14.–Na presente acção, por um lado, a ré não contestou, não impugnou os direitos de propriedade industrial invocados pela autora sobre os medicamentos de referência, nem contra-alegou; por outro lado, a autora defende na petição inicial e nas alegações de recurso, que, nas acções intentadas ao abrigo da Lei 62/2011, a mera publicitação das AIMs pelo INFARMED basta para que exista interesse em agir.

15.A questão colocada ao Tribunal é, assim, a de saber se nos litígios cobertos pela Lei 62/2011, sempre que o requerente da AIM não inicie nem demonstre intenção de iniciar, antes da patente expirar, a exploração do medicamento genérico, há ou não por parte da autora, titular do direito invocado, necessidade de tutela judiciária.

16.A resposta à questão será encontrada mediante a interpretação da Lei 62/2011 à luz da categoria da acção, da causa de pedir e dos critérios de interpretação constantes do artigo 9.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil (CC), nomeadamente, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada, as condições em que é aplicada, e a sua letra. Tudo, conforme a seguir será explicado.

17.A titulo liminar, importa referir que o interesse em agir, não sendo um pressuposto processual nominado, consiste na necessidade de tutela judiciária a que se refere o artigo 2.º n.º 2 do CPC, nos termos do qual: A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.

18.Dito isto, em primeiro lugar, para decidir se existe interesse em agir, este Tribunal leva em conta a categoria à qual pertence a presente acção, uma vez que da mesma depende o funcionamento prático do interesse em agir, à luz do princípio consagrado no artigo 2.º n.º 2 do CPC.

19.Assim, é com base nos critérios constantes do artigo 10.º n.ºs 1 e 2 do CPC, que este Tribunal começa por classificar a acção prevista na Lei 62/2011, aqui em causa, como uma acção declarativa, de condenação. Ora, se é certo que, nas acções declarativas de condenação, como a que está aqui em causa, o interesse em agir resulta, em regra, da alegação da violação do direito do autor, sucede também que, em certos casos (e.g. artigos 557.º e 610.º do CPC), o legislador prescinde excepcionalmente da violação actual do direito, bastando-se com a simples previsão dessa violação (cf. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora Limitada, páginas 179 a 189).

20.É assim que, dentro da categoria das acções de condenação, se incluem, não só as acções persecutórias, que pressupõem a violação do direito, mas também as acções conservatórias, que têm por finalidade acautelar um prejuízo que se receia ou ameaça produzir-se.
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