Acórdão nº 299/20.6T9AVV.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2022-09-12

Ano2022
Número Acordão299/20.6T9AVV.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
No processo comum singular 299/20.6T9AVV que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Local Criminal de Arcos de Valdevez, foi proferida sentença, nos termos da qual foi decidido, para além do mais:

- Absolver o arguido, J. S., da prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, al. a) e nºs 2, al. a), 4 e 5 do C. Penal, de que vinha acusado;
- Absolver o arguido, J. S., da prática, como autor material, de quatro crimes de ameaça agravado, p. e p. pelos arts. 153º e 155º, al. a), ambos do Código Penal, de que vinha acusado;
- Condenar o arguido, J. S., pela prática, como autor material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos p. e p. pela al. d) e m) do nº2 do art. 3º e art. 86º, nº1, al. c), ambos da Lei nº5/2006, na pena individual de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), no total de €500,00 (quinhentos euros);
- Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil formulado por M. P. contra o arguido, absolvendo-o do mesmo.

2.
Não se conformando com o decidido, veio a Assistente interpor o presente recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
i. Na situação sub iudice, não cabia a aplicação do princípio ne bis in idem (cfr. n.º 5 do artigo 29.º da CRP). Porquanto, o arguido não foi julgado anteriormente pelos factos descritos na acusação pública e, ulteriormente, no despacho de pronúncia;
ii. No processo n.º 204/19.2GBAVV não foi aplicado o instituto da suspensão provisória do processo e, bem assim, não ficou o arguido/recorrido sujeito ao cumprimento de qualquer injunção ou regra de conduta;
iii. No âmbito do processo n.º 204/19.2GBAVV, foi proferido despacho de arquivamento, com base na falta de indícios suficientes da prática do crime (vide n.º 2 do artigo 277.º do CPP). Portanto, tal despacho não é suscetível de trânsito em julgado, porque sempre poderia ser reaberto nos termos do artigo 279.º do CPP;
iv. Acresce que, o arguido requereu a abertura de instrução, por considerar estar diante da violação do princípio ne bis in idem, e invocou a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP, referindo-se, no entanto, ao processo n.º 518/19.1T9PTL e aos presentes autos;
v. No que concerne ao processo n.º 204/19.2GBAVV, nada foi dito por parte do arguido/recorrido, até ao encerramento do debate instrutório;
vi. Idem, o despacho de saneamento do processo, não conheceu de qualquer nulidade, exceção ou questão prévia que obstasse ao conhecimento do mérito da causa;
vii. E o arguido não interpôs recurso do supramencionado despacho;
viii. O arguido/recorrido só veio, posteriormente, em sede de contestação, invocar a nulidade estatuída na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP, tomando em linha de conta a base fática constante do processo n.º 204/19.2GBAVV, em sede de contestação. Ora, de acordo com a alínea c) do n.º 3 do artigo 120.º do CPP, a nulidade deveria ter sido invocada até ao encerramento do debate instrutório.
Não tendo assim sucedido, a nulidade ficou sanada;
ix. O Tribunal a quo, tendo sido a nulidade invocada na contestação, e constituindo uma questão que pudesse, desde logo, apreciar, não conheceu de qualquer nulidade ou questão prévia, conforme n.º 1 do artigo 338.º do CPP;
x. E o Defensor do arguido, tendo-lhe sido concedida a palavra para exposições introdutórias (vide artigo 339.º do CPP), dela prescindiu;
xi. Ainda, o arguido/recorrido foi confrontado com os factos descritos na acusação pública e no despacho de pronúncia, já em sede de primeiro interrogatório judicial, por isso, ficou assegurada a defesa;
xii. Outrossim, verifica-se uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (vide 2.ª parte da alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP), porque o Tribunal a quo, por um lado, exara que o despacho de arquivamento, proferido em virtude do n.º 2 do artigo 277.º do CPP, não admite trânsito em julgado, mas não se coíbe de absolver o arguido/recorrido, por considerar violado o princípio ne bis in idem e a congénita exceção de caso julgado;
xiii. Sem prescindir, não cumpria a aplicação do princípio in dubio pro reo, por existir prova cabal da prática dos factos descritos na acusação pública e no despacho de pronúncia, pelo arguido;
xiv. Assim, os factos descritos de 3) a 24) do despacho de pronúncia deveriam ter sido dados como provados. E, consequentemente, deveria o arguido ter sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, conforme configurado no despacho de pronúncia;
xv. Implicativamente, e porque ficaram provados os danos sofridos pela recorrente, em virtude da conduta ilícita do arguido/recorrido, como o nexo de causalidade, deveria o arguido/recorrido ter sido condenado no pagamento do pedido de indemnização civil;
xvi. Não o tendo sido, deverá esta decisão ser substituída por outra que condene o arguido/recorrido pelos factos perpetrados e vertidos de 3) a 24) do despacho de pronúncia, e que se subsumem num crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 alínea a) e n.º 2 alínea a), n.º 4 e n.º 5 do CP;
xvii. E, bem assim, que condene o arguido/recorrido no pagamento do pedido de indemnização civil deduzida pela recorrente;
xviii. A recorrente não se pode conformar com o juízo feito pelo Tribunal a quo, com a fundamentação e decisão proferida. Por ser assim, e porque só agora o logrou obter, requer a junção ao processo de documento, que comprova a falsidade das declarações prestadas pelo arguido, no que respeita ao destino do dinheiro do casal, e que muito influíram na sentença ora emanada. Fá-lo, ainda que o mesmo não seja aceite, em defesa da sua honra, do seu bom nome, da sua integridade, pelo menos, perante V. Exas. E, igualmente, para demonstrar que, com o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo, quando decidiu absolver o arguido da prática dos factos e arrolou a justificação que consta da sentença;
xix. Apela-se, por último, ao elevado grau das exigências de prevenção geral e de prevenção especial.

Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, fazendo-se assim a acostumada e TÃO NECESSÁRIA JUSTIÇA!»

3.
A Exma. Procuradora República na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo pela sua improcedência, nos seguintes termos:
1.
A questão da aplicação do princípio ne bis in idem à fase de inquérito, e, mais propriamente, ao despacho de arquivamento proferido nos termos do artigo 277.º, do CPP, está relacionada com o valor e efeitos a atribuir ao despacho de arquivamento, e com a questão do sentido e extensão da paz jurídica que o arguido deve beneficiar com tal despacho.
2.
Deverá ser reconhecido que o objeto ou tema do arquivamento tem o efeito de vincular não só o MP como também o Tribunal - entendimento que nos é dado pelo regime da reabertura do inquérito, previsto no artigo 279.º do CPP, que impõe que o MP não pode reabrir o inquérito sem observar os requisitos ali previstos, o que pressupõe a fixação prévia de um objeto do processo.
3.
A figura da reabertura do inquérito reconhece que o arguido deve gozar de paz jurídica depois de o inquérito ter sido arquivado; devendo, assim, ser reconhecida força de caso julgado (ou efeito análogo a este) ao despacho de arquivamento proferido pelo MP; força essa que tem subjacente uma evidente intenção política de garantia ao arguido de que não será mais perseguido pelo sistema penal.
4.
E sendo certo que a perturbação da paz jurídica do cidadão começa logo na fase de inquérito, então aquele princípio constitucional deverá ser assegurado logo nessa fase.
5.
Sem prejuízo do instituto processual previsto no artigo 279.º, n.º 1, do CPP: a reabertura do inquérito, figura jurídica de recurso excecional, em razão dos valores jurídicos já enunciados, e com um regime vinculativo.
6.
Não poderia admitir-se que, depois do arquivamento proferido nos autos precedentes n.º 204/19.2GBAVV, e no caso de existir prova idónea a fundar uma reabertura, o MP pudesse prosseguir paralelamente investigações sobre os mesmos factos, iniciando e abrindo um novo inquérito (o que deu origem aos presentes autos) - 299/20.6T9AVV –, sem observância do regime vinculativo do artigo 279.º, n.º 2, do CPP, desde logo, sem fundamentar a reabertura, proferindo despacho com tal finalidade.
7.
A exigência de despacho do MP a fundamentar a reabertura do inquérito, impõe-se como garantia de defesa do arguido que, ao ver-se afetado pelo inquérito reaberto, e novamente perseguido, pode reclamar hierarquicamente dessa decisão do MP, nos termos do artigo 279.º, n.º 2, do CPP, para obstar, desde logo, à continuidade da ação penal.
8.
O vício da nulidade relativa à violação do princípio ne bis in idem, está sujeito ao regime das nulidades insanáveis, regime previsto no artigo 119.º, do Código de Processo Penal (e não ao regime das nulidades dependentes de arguição, previsto no artigo 120.º, do CPP), pelo que pode e deve ser conhecido oficiosamente, e, até, deve ser oficiosamente investigado (no caso de os autos colocarem à luz do julgador tal questão).
9.
Tanto se impunha que o tribunal a quo o fez, em fase de julgamento.
10.
E não se invoque que os factos do n.º 204/19.2GBAVV e dos presentes autos 299/20.6T9AVV configuram uma unidade criminosa, para justificar a impossibilidade de fragmentação do mesmo pedaço de vida, impondo que o segundo inquérito absorvesse os factos do primeiramente arquivado; isto porque – entendemos nós – a resolução criminosa subjacente aos dois inquéritos é diferenciada.
11.
O despacho tabelar proferido nos termos do artigo 311.º, do CPP não fez caso julgado; tal despacho não é suscetível de vedar uma outra, e subsequente, apreciação do assunto, desde que justificada - e, desta...

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