Acórdão nº 298/21.0PCSNT.L1-3 de Tribunal da Relação de Lisboa, 16-02-2022

Data de Julgamento16 Fevereiro 2022
Ano2022
Número Acordão298/21.0PCSNT.L1-3
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I- Relatório
Inconformada com a decisão proferida no âmbito do NUIPC 298/21.0PCSNT pendente no Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 2 – do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste apresenta-se a recorrer perante este Tribunal a assistente EMF______ a qual, após motivações, formulou as seguintes conclusões:
“1. Tendo em conta a sentença proferida pelo Tribunal a quo, no passado dia 2 de Novembro de 2021, entende a Recorrente que deveria ser sido dado como provado o facto descrito na alínea a) do ponto B.
2. E consequentemente, ao invés do Arguido/Recorrido SM_________ ter sido condenado na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.e p., pelo artigo 143º nº1 do Código Penal na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,50, o que perfaz um montante global de € 1.100,00€ (mil e cem euros), deveria ter sido condenado no crime de violência doméstica previsto e punido pela alínea d) do nº1, alínea a) do nº2, nº 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal.
3. O Tribunal a quo ao invés de apreciar a prova no seu todo, desconsiderou o depoimento da testemunha DM_______ .
4. Importa referir que tal testemunho se afigure primordial dada a relação de parentalidade existente entre o Recorrido e a Ofendida DM_______ .
5. Ora, com base na prova produzida e supra exposta, a conduta praticada pelo Arguido/Recorrido é claramente demonstrativa que o mesmo sabia o que estava a fazer e ainda assim empregou, de forma abusiva, uma conduta punível.
6. Durante 6 (seis) anos seguidos vividos entre a menor e o Arguido/Recorrido, a mesma sofreu e presenciou atitudes de violência, não só físicas como emocionais por parte do arguido/recorrido que lhe deixaram marcas profundas, ao ponto de necessitar de acompanhamento psicológico.
7. Pelo que a douta sentença entra em contradição quando existe uma clara e coerente descrição e percepção que o Arguido/Recorrido não só sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como ainda assim quis empreendê-las, e não se importou com as consequências das mesmas acrescidas.
8. Atentado dessa forma, contra à dignidade humana da menor DM_______ , à sua saúde física, psicológica e ao seu bem-estar.
9. Os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si uns com os outros, nomeadamente os pontos 44 a 47 dos factos dado como provados e o ponto B) Factos não provados.
10. Primeiramente o Tribunal a quo reconhece que o Arguido tinha consciência de que o desenvolvimento físico e psíquico da sua filha DM_______ , ficaria lesado face aos acontecimentos e situações intimidatórias que a mesma presenciou;
11. E posteriormente afirma que não ficou demonstrado que o arguido sabia que, ao agredir EMF______ na presença da sua filha DM_______ , que, com 9 anos de idade, já tem percepção dos acontecimentos, ao lhe dirigir as expressões intimidatórias supra descritas, amedrontava-a e ofendia-a psiquicamente.
12. Ora, o ponto b) dos factos não provados, deverá ser dado como provado.
13. - Declarações da testemunha _________, agente da PSP, prestadas em audiência de julgamento no dia 11.11.2021 (período da manhã), tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal (H@bilus Media Studio), nos termos do nº 1 do artigo 364º do Código de Processo Penal, consignando-se o seu início pelas 10:51:48 horas e o seu termino pelas 11:03:18 horas.
14. (…)
15. Procuradora M.P: o Sr. Agente referiu que uma das menores tinha um edema no braço.
Recorda-se do local?
16. Agente Marco: Era no antebraço, creio eu que era no antebraço esquerdo.
17. No que concerne à pena aplicável ao Recorrido face à menor DM_______ , considerou o Tribunal a quo condena-lo pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto no artigo 143º do Código Penal.
18. Tal desvalorização da conduta do Arguido/Recorrido não parece correcta aos olhos da Recorrente dada à relação existente entre a DM_______ e o Arguido/Recorrido.
19. A relação de parentalidade implica um especial cuidado e protecção que ao ser violado, a ofendida assume-se como uma vítima “especialmente vulnerável”.
20. Justificando-se para tal a imputação ao Arguido/Recorrido do crime de violência doméstica previsto e punido pela alínea d) do nº1, alínea a) do nº2, nº 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo.
21. Por último, face a medida concreta da pena aplicável, tendo em consideração as condições pessoais e económicas do Arguido/ Recorrido, assim como a postura que adoptou em audiência de discussão e Julgamento pautada por um total desprezo e ausência de interiorização do desvalor dos comportamentos por si realizados , não demonstrando o mínimo de arrependimento face à prática das suas condutas e do entender da Recorrente que a condenação do arguido numa pena de 200 dias de multa, no montante global de 1.100,00€ (mil e cem euros) apresenta-se descontextualizada face ao descrito e provado em audiência de Julgamento.
22. Pelo acima descrito, deverá ser de aplicar ao Arguido/Recorrido, na pessoa da sua filha DM_______ , o crime de violência doméstica previsto e punido pela alínea d) do nº 1, alínea a) do nº 2, nº 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal.
23. No que concerne ao Pedido de Indemnização Civil, entende a Recorrente que a condenação a pagar a quantia de 2.500,00€ à filha DM_______ se mostra proporcional tendo em conta os danos sofridos.
Nestes termos e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas deverá o presente Recurso ser declarado procedente e consequentemente revoga-se a decisão/Sentença Recorrida e em sua substituição determina- se como provado o facto descrito na alínea a) do ponto B e condenar o Arguido pelo crime de violência doméstica previsto e punido pela alínea d) do nº1, alínea a) do nº2, nº 4 e 5 do artigo 152º do Código Penal no que diz respeito à menor DM_______ .”
Ao assim recorrido veio responder o Ministério Público sustentando que:
“1. Verifica-se o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (cfr. art. 410º, n.º 2, al. b) do CPP), quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa é julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir.
2. Assim, a contradição insanável da fundamentação pode respeitar à contradição da fundamentação da matéria de facto ou à contradição na própria matéria de facto (fundamento da decisão de direito).
3. Contudo, “a contradição só releva, juridicamente, quando existe uma oposição directa entre os factos qualquer que seja o sentido que se dê a cada um deles” - cfr. Ac. do STJ de 9/2/2000, Rec. nº 284/98 e António Tolda Pinto in “A Tramitação Processual Penal”, 2ª ed., 2001, p. 1037.
4. No caso sub judice, verifica-se que inexiste qualquer oposição entre os factos provados, os factos não provados, nem entre estes e aqueles, nomeadamente entre os Pontos 44-47 dos “Factos Provados” e o Ponto B) dos “Factos Não Provados”, mas antes se apercebe que todos se harmonizam.
5. Muito menos existe um confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, assentando a convicção do Tribunal a quo, de forma fundamentada, na prova produzida e referida na douta sentença condenatória. Nem tão pouco se descortina qualquer contradição entre a motivação e a decisão da matéria de facto.
6. Pelo contrário, da análise do texto relativo à matéria de facto, globalmente considerado, não se pode concluir que, ao fixar tal matéria, o Tribunal a quo deveria ter apreciado a prova de outra forma e que essa conclusão se imporia de forma manifesta a qualquer cidadão de capacidade e entendimento médios.
7. Face ao exposto, forçoso é concluir que não assiste qualquer razão à Recorrente quando alega que a sentença padece de contradição e que os factos julgados como provados e como não provados colidem entre si uns com os outros.
8. No crime de violência doméstica está em causa a protecção da pessoa individual, da sua dignidade humana, sendo que “o bem jurídico protegido é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos” – Vide Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág. 332.
9. Pode ser um crime habitual, caso a sua prática seja reiterada no tempo (de forma mais ou menos espaçada, dependendo das circunstâncias do caso concreto), ou mesmo que não haja reiteração, quando são infligidos maus-tratos físicos ou psíquicos.
10. Assim, o tipo objectivo de ilícito preenche-se com a acção de infligir “maus-tratos físicos” ou “maus-tratos psíquicos”, pelo que para a consumação do crime de violência doméstica não é necessário que a conduta do agente assuma um carácter violento ou reiterado (cfr. alterações introduzidas pela Lei nº 52/2007, de 04/09).
11. Todavia, em caso de uma agressão isolada, importa analisar e caracterizar o quadro global da agressão, de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima, constituindo “um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima” – Vide Nuno Brandão in
“Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010.
12. In casu, pese embora tenha resultado provado que o arguido agarrou no braço de DM_______ , puxando-o com força, em consequência do que a ofendida sentiu dores e sofreu edema na região do cotovelo esquerdo com impotência
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