Acórdão nº 28969/22.7T8LSB.L1-6 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-02-09

Ano2023
Número Acordão28969/22.7T8LSB.L1-6
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
G…, solteiro, maior, nif ..., residente na Rua …, nº …, R/C Esquerdo, 1300 – 047 Lisboa, vem nos presentes autos afirmar “propor em seu benefício acção especial de acompanhamento de maior” na qual é requerido B… solteiro, maior, nif …, residente na Rua … nº …, R/C Esquerdo, … Lisboa, pedindo que seja designado o requerido como acompanhante do Requerente para as seguintes intervenções:
«a) continuar a confeccionar-lhe as refeições como até à presente data;
b) acompanhá-lo nas suas deslocações para fora de casa, sempre e onde for necessário, nomeadamente a consultas médicas, laboratório de análises clínicas, barbearia, loja de vestuário e calçado, tudo como até à presente data;
c) para tanto, e cautelarmente, requer que V. Exa. se digne ordenar ao Senhor Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada, Praça do Comércio – Edifício da Marinha, 1100 – 148 Lisboa, que, no prazo de 5 dias, faça publicar o seguinte na Ordem da Armada: «O …CAB T B… não pode, a título provisório, ser destacado para o embarque em qualquer navio, incluindo veleiros, e apenas pode ser movimentado por unidades terrestre das áreas do Alfeite, Barreiro, Montijo, Lisboa, Oeiras e Cascais, por determinação judicial proferida em acção especial de acompanhamento de maior e até ao trânsito em julgado dessa acção»;
d) requer ainda que V. Exa., para prevenir a hipótese da não publicação, ou da não publicação no prazo de 5 dias, se digne cominar ao Senhor Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada a sujeição à aplicação da sanção compulsória de 1.500,00 € por cada dia de atraso ou, em alternativa, se digne cominar-lhe expressamente que a não publicação, ou a não publicação no prazo indicado, implica a prática do crime de desobediência p.p. pelo art. 348º, nº 1 do Código Penal, ex vi da al. b) do preceito;
e) requer também que V. Exa. se digne ordenar ao Senhor Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada que no prazo de 10 dias contados da notificação prevista na anterior alínea c) deve juntar aos presentes autos cópia da publicação, devidamente certificada pelos serviços do Estado-Maior, e também sob pena de uma das duas requeridas cominações;
f) mais requer que a decisão final seja igualmente publicada na Ordem da Armada com o seguinte teor: «O … CAB T B… não pode, a título definitivo, ser destacado para o embarque em qualquer navio, incluindo veleiros, e apenas pode ser movimentado por unidades terrestre das áreas do Alfeite, Barreiro, Montijo, Lisboa, Oeiras e Cascais, por determinação judicial proferida em acção especial de acompanhamento de maior», e também sob pena de uma das duas ditas cominações;
g) a decisão final deve ser ainda publicada na secretaria da urgência do Hospital de S. Francisco Xavier, cujo Conselho de Administração está instalado na Estrada do Forte do Alto do Duque, 1449 – 005 Lisboa.».
Alega, para tanto e em síntese, que o Requerente padece de Perturbação Depressiva Major com evolução crónica, em associação com Perturbação de Ansiedade Social, fobia social ou agorafobia, que se manifesta numa «dificuldade extrema em ir à rua e em deslocar-se, com impacto importante no seu funcionamento normal», razão pela qual não trabalha, uma vez que não consegue sair sozinho de casa para o que quer que seja, sendo o requerido que lhe presta toda a assistência, nomeadamente que lhe confecciona refeições e que o acompanha quando tem de sair de casa, não tendo o requerente qualquer outra relação afectiva para além da que mantém com o requerido.
Refere ainda que o requerido é militar dos quadros permanentes da Marinha Portuguesa, estando sujeito ao destacamento para embarque em qualquer navio da Armada, seja de guerra ou simples veleiro, como o NRP Sagres, Creoula, Polar e Zarco, situação que apenas cessará dentro de cerca de um ano e meio, quando perfizer os 48 de idade, altura em que, nos termos da norma militar, deixará de ser elegível para o embarque e a guarnição de navios. Carecendo o Requerente em absoluto da assistência do requerido, a mera conjectura de que o Requerido possa estar longe de casa, a bordo de qualquer navio, produz no Requerente «descontrolo emocional, insónias e ataques de pânico, devido ao medo de perder o irmão e ficar sozinho no mundo», que já induziu no demandante comportamentos tendentes à prática do suicídio, razão pela qual propõe a presente acção.
Recebidos os autos foi proferida decisão de indeferimento liminar da petição inicial, invocando-se a manifesta improcedência, ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável ex vide artigo 549.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Inconformado veio o requerente G… recorrer, formulando as seguintes conclusões:
a) o instituto dos maiores acompanhados afastou-se radicalmente do pregresso regime das interdições e inabilitações, não impondo, na sua intrínseca maleabilidade, como requisitos de aplicação, que os beneficiários, ou todos os beneficiários, revelem incapacidade para governar «suas pessoas e bens» ou «se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património».
b) o instituto vigente não postula, como requisito genérico de aplicação, a alegação e a prova de que o beneficiário padece de incapacidades cognitivas e volitivas susceptíveis de afectarem o seu entendimento quanto ao exercício dos seus direitos e deveres.
c) efectivamente, para o disposto no actual art. 138º do CC apenas releva a impossibilidade de o beneficiário exercer os seus direitos ou de cumprir os seus deveres, o que pode acontecer por razões de saúde.
d) é este e não outro o sentido e alcance do art. 138º, que o douto despacho, acentuando a necessidade de alegação e prova de uma incapacidade de decidir e manifestar a vontade, reconhecer e saber exercer direitos ou cumprir deveres, violou.
e) estando alegado que o beneficiário padece de distúrbios da saúde mental, com persistente perda da autonomia individual, necessitando, por isso, do imprescindível apoio do Requerido, seu irmão, para sair de casa a fim praticar actos da vida tão simples como cortar o cabelo ou realizar análises clínicas num laboratório, tudo a poucos metros de casa, isso significa que não consegue exercer plena e pessoalmente os seus direitos por razões de saúde.
f) tanto bastando para que o Requerido, única pessoa com quem o apelante sai e se locomove para e no exterior de casa, lhe seja nomeado como acompanhante e se decrete medidas de acompanhamento.
g) e nada obstando a que actos materiais de cuidado possam coincidir como deveres do acompanhante, mero apoio à actuação do acompanhado, o douto despacho não contemplou, antes violou, o disposto no art. 145º, nº 2, al. e) do CC.
h) de resto, a conclusão de que o apelante apenas deseja limitar a liberdade de escolha da profissão do Requerido e o seu exercício, é, pelo menos, inverosímil, resultado, decerto, de leitura perfunctória, apenas relanceada, da causa de pedir e do pedido.
i) porque é facto manifesto que o apelante apenas pretende manter a presença que o Requerido lhe dedica, com desvelo e acima de tudo o mais, e que perderá, com gravíssimos efeitos, se este for destacado para um navio.
j) aliás, em resultado de semelhante inverosimilhança, o douto despacho violou o disposto no art. 143º, nº 2, do CC, do qual decorre a qualificação do interesse do beneficiário como «imperioso» para o distinguir de outros interesses, incluindo os daqueles que possam ser nomeados acompanhantes.
k) e isto se o problema se pusesse após audição do Requerido, porque o apelante tem a certeza de que seu irmão não hesitará na escolha entre apoiá-lo e navegar.
l) além disso, se o problema se pusesse, cumpriria decidir favoravelmente ao apelante, porquanto os seus direitos fundamentais de personalidade à manutenção da saúde, reflexo do direito à vida, à locomoção onde for necessário, reflexo do direito à liberdade, e à tranquilidade na doença, constitucionalmente consagrados nos arts. 24º, 25º e 27º da CRP, prevalecem, por se tratar de bens integrantes do valor supremo da dignidade da pessoa humana, sem os quais a pessoa não o é, sobre o direito fundamental do Requerido (art. 58º, 2, al. b) à escolha do género de trabalho, que aliás já tem e de momento cumpre numa unidade militar terrestre com satisfação.
m) por ter violado todos os preceitos indicados nas presentes conclusões, acabou o douto despacho por violar também o disposto no art. 590º, nº 1, do CPC, requerendo-se que V. Exas. o revoguem e, em consequência, ordenem que a causa prossiga a sua normal tramitação para que o Tribunal de 1º grau possa fazer justiça com a humanidade que afinal constitui o alfa e o ómega do novel instituto do acompanhamento de maiores.».
Citado o requerido veio o mesmo declarar “por sua inteira responsabilidade que não vai intervir no recurso que o seu irmão G…, apresentou. Também declara por sua inteira responsabilidade que não irá apresentar qualquer contestação, mesmo que para isso venha a ser notificado”.
Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- É de determinar o prosseguimento dos autos face aos pedidos formulados pelo requerente no âmbito do processo especial de maior acompanhado no qual se visa essencialmente medidas atinentes ao acompanhante.
*
II. Fundamentação:
Além dos factos ou actos processuais referidos no relatório que antecede, haverá ainda que considerar que na petição inicial o requerente arguiu o seguinte:
«1º Requerente e Requerido são entre si irmãos, filhos de MS…, falecida no dia 5 de Abril de 2021 (docs.
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