Acórdão nº 28159/16.8T8LSB-F.L1-1 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-09-20

Data de Julgamento20 Setembro 2022
Ano2022
Número Acordão28159/16.8T8LSB-F.L1-1
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. MASSA INSOLVENTE DA I., S. A. , representada pelo Sr. Administrador a Insolvência, veio por apenso aos autos principais de Insolvência, propor a presente Acção sob a forma de Processo Comum contra o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público, pelo qual peticiona seja judicialmente reconhecido o direito de propriedade privada da I., S.A. em relação ao prédio misto denominado Mouchão da Póvoa da Santa Iria, descrito na Conservatória de Vila Franca de Xira sob o nº 2901, ao abrigo do disposto no artigo 15º, nº 2 da Lei 54/2005 de 15 de Novembro.
Alega, em síntese, que o referido mouchão constitui propriedade privada desde data anterior a 31.12.1864, tendo aquele imóvel sido arrematado em hasta pública pela Companhia das Lezírias do Tejo em 25.6.1836, após autorização régia de venda do domínio directo das Lezírias do Tejo em 16.3.1836. Desde então, por trato sucessivo, o imóvel entrou no capital social da Sociedade M. por escritura de 8.3.1915 e foi adquirida pela Insolvente em 21.9.1987, a qual passou a ser a sua proprietária até à actualidade. Sustenta que este mouchão, incluindo o leito, insere-se em área abrangida pelo domínio público híbrido, pertença do Estado, presunção iuris tantum de dominialidade, passível de ser ilidida pelos interessados privados, pretensão a que se arroga a ora Autora nos autos, face à relevância do valor do mesmo para a massa insolvente após a declaração de insolvência da I. S.A. em 17.2.2017 e do subsequente arrolamento e apreensão do Mouchão da Póvoa de Santa Iria no apenso em anexo aos autos principais.
Regularmente citado, o Réu deduziu contestação, articulado onde, para além de invocar a nulidade da citação e arguir a ineptidão da petição inicial e a falta de registo da acção de reconhecimento de propriedade, alegou desconhecer, sem obrigação de saber, a veracidade dos documentos particulares juntos com a petição inicial (cópias simples e prints de documentos retirados da internet), documentação essa que é inadequada para identificar cabalmente os possuidores do prédio desde 2.3.1868.
Conclui, pois, pela necessária improcedência da acção.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que, julgando procedente por provada a acção, declarou judicialmente reconhecido o direito de propriedade privada da I., SA sobre o prédio misto denominado Mouchão da Póvoa de Santa Iria, descrito na 1ª Conservatória de Vila Franca de Xira sob o nº 2901, julgando, no entanto, improcedente o pedido de condenação do Réu como litigante de má fé, absolvendo-o do pagamento de multa e indemnização.
Inconformado com esta sentença veio o Ministério Público, em representação do ESTADO PORTUGUÊS, interpor o presente recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Termina as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1. Por sentença proferida em 30.12.2021, o Tribunal a quo julgou procedente o pedido da A. e, em consequência, declarou judicialmente reconhecido o direito de propriedade privada da I., SA sobre o prédio denominado Mouchão da Póvoa de Santa Iria, descrito na 1ª Conservatória de Vila Franca de Xira sob o nº 2901.
2. Efectivamente, na sentença de que ora se recorre verifica-se uma contradição e incongruência entre o ponto 1 da matéria dada como não provada e o teor da decisão proferida;
3. Com efeito, dando como não provado que a parcela de sapal, exterior ao valado de protecção do prédio, não integra o mouchão, a MMª Juíza parece querer dar como assente o contrário, ou seja, que o sapal integra o mouchão, o que manifestamente não resultou da prova documental e testemunhal produzida, designadamente e quanto a esta, tendo em consideração o depoimento da testemunha F..
4. A decidir reconhecer a totalidade da propriedade privada do terreno denominado Mouchão da Póvoa, a MMª Juíza considerou que o sapal é parte integrante do referido Mouchão, o que não consta sequer da matéria dada como provada, sendo, por isso evidente a contradição entre a fundamentação e a decisão, o que a torna ininteligível;
5. A decisão do Tribunal a quo relativamente ao aludido facto levou a uma errada interpretação e aplicação do direito ao caso concreto;
6. Tal contradição conduz, necessariamente, à nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no artigo 615º, n.º1, al, c) do Código de Processo Civil, a qual expressamente se invoca.
7. Por outro lado, na motivação da matéria de facto dada por assente, A MMª Juíza formou a sua convicção com base na prova documental bastante e constante dos autos sem, contudo, especificar quais os concretos documentos que sustentam cada um dos factos, não permitindo, desse modo, que o recorrente compreenda como formou o Tribunal a sua convicção, violando, igualmente, o disposto no art. 615º, nº 1 al. b) do CPC.
8. De outra banda, cumpre salientar que a decisão nunca poderia ser procedente sem a apreciação de questões prévias inerentes ao prédio objecto da acção, designadamente, no que se refere à sua delimitação concreta, para efeitos de domínio público, o que, desde logo, obsta ao reconhecimento da propriedade privada, não podendo o imóvel em causa ser objecto de alienação ou aforamento.
9. Efectivamente, a A. não juntou aos autos qualquer planta que identifique com precisão o prédio em causa e suas estremas.
10. De acordo com a informação cadastral disponibilizada pela Direção-Geral do Território, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira com o nº 2901/20040218 estão identificadas as 12 parcelas que, segundo o registo no Serviço de Finanças, compõem o prédio "Mouchão da Póvoa", com a área total registada de 810,20 hectares – docs. 6 e 4 apresentados com a PI. (doc. nº 2, doc. nº 3 da contestação).
11. Dessas 12 parcelas (doc. nº 6 da PI), as parcelas nºs 1 e 3 a 10 estão ocupadas com cultura arvense (CA), a parcela nº 11 (terreno estéril) corresponde à zona onde se concentra o edificado e a parcela nº 12, identificada como “leitos de curso de água”, corresponde, na realidade, à área ocupada por valas, que acompanham internamente o valado exterior/dique de proteção do Mouchão - dique que envolve as parcelas nºs 1 e 3 a 11 - e os taludes/motas que dividem essas parcelas entre si.
12. A parcela nº 2 (sapal), com a área de 376,85 hectares (aproximadamente 46,5% da área total registada), é identificada por "Parcel" (Parcel do Norte e Parcel do Sul) e é totalmente exterior ao valado externo que circunda o Mouchão (ou às 11 outras parcelas).
13. Nos termos do artigo 10º, nº 1, da Lei nº 54/2005, de 15 de novembro, alterada e republicada pela Lei nº 31/2/016, de 23 de agosto – e, anteriormente, já nos termos do artigo 2º do revogado Decreto-Lei nº 468/71, de 5 de novembro –, os mouchões integram o leito, e, a par dos lodeiros e areais (uns e outros formados no leito por deposição aluvial), constituem parcelas do leito a descoberto.
14. O sapal trata-se, portanto, da zona compreendida entre a preia-mar e a baixa-mar que é parte do leito (leito na aceção comum) e não se enquadram no conceito de parcelas do leito a descoberto, são, sim, parte do leito na aceção comum do respetivo conceito (constante, deste modo, da primeira parte do artigo 10º, da Lei nº 54/2005).
15. Consequentemente, os sapais não são considerados parte integrante dos mouchões.
16. Assim, a indicada parcela nº 2 – sapal, com 376,85 hectares (aproximadamente 46,5% da área total registada), que é totalmente exterior ao valado/dique de proteção do prédio, e, note-se, sem qualquer rendimento parcelar, segundo o registo do Serviço de Finanças, não integra o mouchão, sendo também ela (parcela 2, sapal) parte do leito que as águas do rio Tejo cobrem e descobrem nas sucessivas marés e, em consequência, integra o domínio público hídrico/domínio público marítimo do Estado, conforme artigos , , alínea c), e 4º da Lei nº 54/2005.
17. Daqui decorre que o sapal existente em redor do valado/dique de proteção (com supostamente cerca de 376,85 hectares) não integra o mouchão, o que conduz a uma substancial redução da área total registada (810,20 hectares) do prédio nº 2901/20040218, da freguesia de Vila Franca de Xira, objeto desta ação (doc. n.º 7 da contestação).
18. A determinada delimitação do domínio público marítimo nunca terá sido requerida/concretizada e, à data daquele requerimento da Sociedade Mouchão da Póvoa (14.03.1969), já o Mouchão se encontrava registado com a área total de 810,20 hectares – cfr. averbamento 3, de 1962.05.17, à descrição nº 8637 do livro B-22 – incluindo nessa área os 376,85 hectares de sapal (parcela nº 2), área que condiz com a referenciada na alínea i) da informação da DGSH que diz que esse sapal (com aproximadamente 300 hectares) é praticamente inundado por marés de altura inferior em 0,40 m às indicadas para Julho. (doc. nº 10 da contestação).
19. Impõe-se, então, a questão de saber qual a área do leito do rio Tejo (estuário) que pode ser reconhecida como propriedade privada, esclarecendo-se que, face ao atrás exposto, a área nunca poderá corresponder à peticionada pela A..
20. A integração da parcela de sapal no Mouchão da Póvoa não pode ser determinada na sentença, pois que viola o disposto no art. 17º da Lei 54/2005 de 15 de Novembro.
21. Efectivamente, o art. 15º da referida Lei 54/2005 impõe que o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens das águas do mar e das águas navegáveis ou flutuáveis apenas seja possível através de competente acção judicial.
22. Ora, voltando à sentença posta em crise, afigura-se-nos não poder ser assumida como propriedade privada da A. não só o Mouchão da Póvoa em si (isto é, da área interior ao valado que circunda o mouchão e que corresponde a uma parcela de leito a descoberto do Tejo) como também da parcela sapal exterior a esse valado.
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