Acórdão nº 230/21.1PFLSB.L1-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-01-12

Ano2022
Número Acordão230/21.1PFLSB.L1-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I
RELATÓRIO
No processo n.º 230/21.1FLSB, que correu termos no Juízo Local Criminal de Lisboa – J 12, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, teve lugar a audiência de julgamento, na qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
a) Absolve-se o arguido A, da prática, do crime de que se encontra acusado.
Objectos:
b) Ao abrigo do disposto no artigo 109º, n.º 1, do Código Penal, declara-se perdida a favor do Estado a faca que se encontra apreendida no âmbito dos presentes autos e respectivo coldre de transporte (auto de apreensão que constitui fls. 8).
*
Sem custas.
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2
Não se conformando com a decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso, no qual formulou as seguintes conclusões:
a) O Ministério Público deduziu acusação (fls. 89 a 91), para julgamento em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, pelos factos ali descritos que aqui se dão por integralmente reproduzidos, contra o arguido A imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência ao disposto nos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), do mesmo diploma legal.
b) Como bem resulta do despacho proferido em 20/04/2022 que recebeu a acusação, transitado em julgado, caso julgado formal, o Mmº Juiz “a quo” decidiu, atentos os fundamentos materiais invocados e a sua correção formal, receber a acusação inserta nos autos, deduzida pelo Ministério Público, a fls. 89 a 91, contra o arguido A Martins - melhor identificado no despacho de acusação -, pelos factos nela descritos e qualificação jurídica.
c) Mantendo-se a instância válida e regular, da audiência de julgamento resultou provado que:
1º) No dia 19.02.2021, por volta das 22h40m, na Rua Douradores, n.º 134, em Lisboa, o arguido tinha consigo uma faca afeta à prática venatória, com 30,2 cm de comprimento total e 17,2 cm de comprimento de lâmina.
2º) A faca referida em 1) encontrava-se fora do local do seu emprego normal.
3º) O arguido não justificou a posse da faca referida em 1) e não tinha quaisquer motivos para a deter no circunstancialismo de modo, tempo e lugar ali referido.
4º) Ao actuar do modo acima descrito, o arguido:
- Agiu de forma livre, deliberada e consciente;
- Sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei.
d) Como bem resulta do texto da decisão recorrida, encontra-se preenchido, na sua globalidade, o elemento objetivo do artigo 86º.
e) No que concerne ao preenchimento do elemento subjetivo do tipo do crime, o Mmº Juiz “a quo” entendeu que “apenas” se provou que, ao actuar do modo acima descrito, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, e sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei, factualidade que, entende, é insuficiente para o preenchimento do elemento subjetivo, absolvendo em consequência o arguido da prática do crime imputado.
f) Afigura-se-nos que o assim decidido quanto ao (não) preenchimento do elemento subjetivo do tipo do crime padece de erro de julgamento de direito, com violação do artigo 86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência ao disposto nos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), ambos do mesmo diploma legal, e 14º do C.P..
g) O dolo traduz-se num saber (ou, pelo menos, representar) e num querer, tendo factualmente que resultar dos factos narrados na acusação que o agente representou e quis os factos do tipo objetivo - os factos do dolo do tipo, os quais não são de especificação obrigatória no despacho de acusação, sob pena de o terem de ser todos os restantes elementos da doutrina do crime.
h) Na verdade, da leitura do despacho de acusação resulta o infundado da referida afirmação exarada na sentença recorrida, já que a descrição do dolo não exige especificação, sendo suficiente o enunciado “o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente”, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, o que não é infirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015.
i) A acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito.
j) Analisando os factos narrados na acusação e aproveitáveis para uma conclusão sobre o preenchimento do dolo (do tipo), conclui-se que a mesma os descreve, minimamente é certo, mas ainda suficientemente, sendo certo que o ónus de especificação factual do dolo inclui os factos relativos ao dolo do tipo e não impõe a narração dos factos relativos ao dolo da culpa e, por isso, também não é exigível a narração factual do elemento emocional do dolo, sob pena de terem de ser então descritos todos os restantes elementos da doutrina do crime, o que se apresenta como indefensável.
l) Esta factualidade, ainda que possa não ter sido alegada de forma exemplar, permitirá ter por preenchido o dolo genérico, traduzido na intenção e vontade de praticar o facto, sabendo que o mesmo era ilícito (elementos volitivo e intelectual do dolo), bem como o dolo específico/ intenção, e ainda a consciência da ilicitude (elemento emocional do dolo), contendo assim, de modo suficiente, a totalidade dos elementos subjetivos do tipo de crime de imputado ao arguido.
m) A assim se não entender, o vício formal de falta de narração na acusação de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo pode ser suprido mediante o procedimento previsto no art. 358.º do CPP, por razões que se prendem com o princípio ou regra da conservação dos atos processuais inválidos.
n) Tendo o Mmº Juiz “a quo”, por despacho proferido em 20/04/2022 ao abrigo do disposto no art.311º do C.P.P., atentos os fundamentos materiais invocados e a sua correcção formal, recebido a acusação inserta nos autos, deduzida pelo Ministério Público, a fls. 89 a 91, contra o arguido A Martins - melhor identificado no despacho de acusação -, pelos factos nela descritos e qualificação jurídica, que aí dá por integralmente reproduzido e tendo depois, em sede de sentença proferida em 2/06/2022, dando como provados os factos narrados no despacho de acusação e entendendo agora não se mostrar neste indicado o elemento subjetivo do tipo do crime imputado ao arguido, o assim decidido violou o caso julgado formal da decisão proferida ao abrigo do disposto no art.311º do C.P.P. transitada em julgado e o princípio do esgotamento do poder jurisdicional.
o) A não rejeição da acusação no momento próprio frustrou a pretensão punitiva do Estado, impedindo a decisão surpresa proferida em sede de sentença a dedução de nova acusação/correção que suprisse a tida por insuficiente narração do elemento subjetivo do tipo do crime imputado ao arguido.
p) Face a todo o exposto, ao decidir como decidiu, o Mmª Juiz “a quo” na douta sentença recorrida violou o disposto nos arts.86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência ao disposto nos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), do mesmo diploma legal, 14º do C.P., 311º e 358º do C.P.P. e 282º, nº3, da C.R.P..
Termos em que, decidindo em conformidade com as conclusões que antecedem, deve ser revogada a douta sentença e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido nos termos do artigo 86º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei 5/2006, de 23.02, por referência ao disposto nos artigos 2º, n.º 1, alínea m), e 3º, n.º 2, alínea ab), do mesmo diploma legal, não deixando assim V.Exªs de, em alto critério, fazer a habitual justiça.
3
Não foi apresentada resposta.
4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu o seu parecer, pugnando pela procedência do recurso, aderindo aos fundamentos invocados na motivação apresentada na primeira instância.
5
Foi dado cumprimento ao disposto ao art.º 417.º, n.º 2, do CPP, nada tendo sido dito.
6
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
II
FUNDAMENTAÇÃO
1
Objeto do recurso:
A
Os factos dados como provados na decisão recorrida permitem a conclusão de que se encontra preenchido na sua totalidade o elemento subjetivo do tipo, ou dolo, designadamente quanto ao seu segmento intelectual?
B
Em caso de resposta afirmativa à anterior questão, deve ser revogada a decisão recorrida e proferida decisão de condenação do arguido pela prática do crime pelo qual está acusado?
2
Decisão recorrida (excerto relevante):
2) Fundamentação:
2.1) De facto:
(…)
2.1.1.1) Provados:
1º) No dia 19.02.2021, por volta das 22h40m, na Rua Douradores, n.º 134, em Lisboa, o arguido tinha consigo uma faca afecta à prática venatória, com 30,2 cm de comprimento total e 17,2 cm de comprimento de lâmina.
2º) A faca referida em 1) encontrava-se fora do local do seu emprego normal.
3º) O arguido não
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