Acórdão nº 2176/18.1T9FNC.L1-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-05-05

Data de Julgamento05 Maio 2022
Ano2022
Número Acordão2176/18.1T9FNC.L1-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Juízo de Instrução Criminal do Funchal, por despacho de 24/11/2021, decidiu-se não pronunciar a Arg.1 AA, com os restantes sinais dos autos, nos seguintes termos:
“... Findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento relativamente à denúncia apresentada por ……………….., na qualidade de procurador de ………………. na qual imputava a AA, a prática de factos susceptíveis de integrar a prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alíneas a) ou b) do Código Penal.
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Por discordar do teor do despacho de arquivamento ……………. e de ………………. requereram a abertura de instrução, nos termos do disposto no art.º 287.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que …………………. faleceu na madrugada (04:00h) do dia 12/12/2017, em Erongo, República da Namíbia após o que, as assistentes se deslocaram a Portugal para tratar de questões burocráticas.
Refere que as assistentes sabiam que a sua tia tinha património imobiliário na RAM, bem como de contas bancárias e um cofre tendo deixado documentos referentes às jóias que se encontravam no interior do mesmo.
Menciona que tentaram saber junto da CGD como poderiam proceder à abertura do cofre, tendo-lhes sido comunicado que o dito cofre havia sido esvaziado, resultando do apurado em inquérito, que a arguida no dia 13 de Dezembro de 2017 esvaziou o cofre e o encerrou.
Afirma que ao contrário do que refere no seu interrogatório, a arguida sabia da existência de todos os bens dentro do cofre, sabia não ser herdeira da falecida e não ter direito a qualquer dos bens existente.
Descreve que a arguida menciona a existência de um testamento na Namíbia e que entregou bens à herdeira da falecida, mas esse testamento apenas se refere ao património na Namíbia e a arguida nunca foi confrontada com a existência do testamento feito em Portugal, do qual resulta que as assistentes são as herdeiras da falecida.
Requereram que seja proferido despacho de pronúncia da arguida pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alíneas a) e b) do Código Penal.
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Em sede de instrução procedeu-se a inquirição de uma testemunha e análise dos documentos juntos, bem como daqueles cuja junção se determinou.
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Realizou-se o debate instrutório com observância do formalismo legal.
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O tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal.
Não existem outras nulidades ou questões prévias ou incidentais de que cumpra, conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
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Segundo o disposto no art.º 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
O art.º 283.º, n.º 2, ex vi art.º 308.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, estipula que “consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Sobre este conceito legal escreve o Prof. Figueiredo Dias - os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face dela, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. Acrescenta este autor que logo se compreende que a falta delas (provas) não possa de modo algum desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova..., tem de ser sempre valorado a favor do arguido. - Direito Processual Penal,1º, 1974, 133, citado no Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T. II, p. 65.
Na jurisprudência, a interpretação desse conceito é resumida pela Relação de Coimbra (Ac. da Rel. de Coimbra, de 31.3.93, in C.J., T.II, p.65) da seguinte forma - para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que é imputado.
Neste sentido se pronunciou o S.T.J. (Ac. de 10.12.92, citado no Código de Processo Penal Anotado, de Manuel Silva Santos e outros, Ed. de 1996, p.131), que definiu “indiciação suficiente” como aquela que resulta da verificação suficiente de um conjunto de factos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em audiência de julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos da infracção porque os agentes virão a responder.
Deve assim o juiz de instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida em sede de inquérito e de instrução e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, consequentemente, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.
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As assistentes imputam à arguida a prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e n.º 4, alíneas a) e b) do Código Penal.
Nos termos do disposto no art. 205.º, n.º 1 do Código Penal, quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Conforme ensina Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 94, “Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma, (...), violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (...).”
São, deste modo, elementos do tipo: a) a apropriação ilegítima; b) de coisa alheia móvel; c) entregue por título não translativo da propriedade.
O abuso de confiança consiste em o agente fazer sua (apropriar-se) uma coisa móvel alheia que já detém. A apropriação não acompanha a posse ou detenção da coisa, sucedendo antes a essa mesma posse ou detenção. Com efeito, o agente começa por receber a coisa validamente, passando a possuí-la ou a detê-la de forma lícita, embora a título precário ou temporário, só que, a posteriori, vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor dela ut dominus. Deixa, pois, de possuir em nome alheio, fazendo entrar a coisa no seu património ou dispondo dela como se fosse sua, em qualquer dos casos com o propósito de não a restituir.
Com efeito, como salientam Simas Santos e Leal-Henriques, “de início, o agente recebe validamente a coisa, passando a possuí-la ou detê-la licitamente, a título precário ou temporário, só que posteriormente vem a alterar, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa ut dominus” (In Código Penal Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Rei dos Livros, 2000, p. 686.)
Assim, a verificação do crime de abuso de confiança pressupõe uma entrega válida de coisa móvel, sendo que esta entrega terá, forçosamente, de ser realizada por título que não implique a transferência da propriedade nos termos previstos no artigo 1316.º do Código Civil.
Apropriar-se significa, então, fazer a coisa sua, integrá-la no seu património, tornar-se o seu proprietário, exigindo-se que tal se revele por actos concludentes (Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, II, Coimbra Editora, 1999, p. 104).
É a apropriação “o elemento típico que exprime por excelência o bem jurídico protegido”: “o agente, que recebera a coisa uti alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela - naturalmente, através de actos objectivamente idóneos e concludentes, nos termos gerais - uti dominus”; é “exactamente nesta realidade que se traduz a ‘inversão do título de posse e detenção’ e é nela que se traduz e se consuma a apropriação” (In Comentário...cit., p. 103.).
Um dos “actos concludentes” de que se pode deduzir “que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se perante a coisa como proprietário” é - para além da “disposição (da coisa) de forma injustificada” - a sua dolosa “não restituição no tempo e sob a forma juridicamente devidos” (In Comentário...cit., e neste sentido, v. igualmente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/05/2003, Processo n.º 3P852, in wwwÁgsi.pt.)
Com efeito, o crime de abuso de confiança pressupõe a inversão do título de posse ou detenção, i. e. exige que o agente passe a comportar-se relativamente à coisa como seu proprietário e isto terá, inequivocamente, de resultar de actos objectivamente idóneos e concludentes.
No que diz respeito ao tipo subjectivo, importa referir, como faz Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 107, que se exige o dolo relativamente à totalidade dos elementos do tipo objectivo de ilícito, “tratando-se pois de crime de congruência total.”
Ora, da conjugação da prova produzida em sede de inquérito e de instrução não resultam indícios suficientes da prática pela arguida do crime que lhes foi imputado pelas assistentes.
Na verdade, ainda que considerando o teor do depoimento prestado em sede de instrução e o teor dos documentos juntos, não é possível afirmar que aquando do falecimento ………………….. se encontravam no cofre a que a arguida acedeu quaisquer bens que não aqueles que a arguida descreve no seu interrogatório, designadamente jóias, que aliás não foram concretamente descritas no requerimento de abertura de instrução ou indicado o seu valor.
Com efeito, a arguida afirmou que o cofre apenas continha documentos e uma chave que entregou a quem considerou ser a herdeira da falecida, ……………………………., a qual, no seu depoimento confirmou a versão da arguida.
Por sua vez, a testemunha ouvida em
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