Acórdão nº 204/23.8GBCHV-A.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 19-03-2024

Data de Julgamento19 Março 2024
Ano2024
Número Acordão204/23.8GBCHV-A.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo de inquérito (atos jurisdicionais) nº 204/23...., da Procuradoria do Juízo Local Criminal de Chaves – Secção de Inquéritos -, em que se investigam factos suscetíveis de integrarem a prática, pelo arguido AA e pelo suspeito BB, de um crime de violência doméstica, alegadamente ocorridos (no que ora interessa) em 17.09.2023 e 02.10.2023, a Exma. Senhora Juíza de Instrução não autorizou o a obtenção dos dados de tráfego/localização celular requeridos pelo Ministério Público, por despacho de 15.11.2023 (Ref.ª citius 38887427), com o seguinte teor:
«Nos presentes autos de inquérito, em que se investiga, a prática, pelo arguido AA e pelo suspeito BB de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, alegadamente ocorridos, no que ao caso ora interessa em 17-09-2023 e 02-10-2023, veio o Ministério Público requerer a obtenção, junto das operadoras de telecomunicações, ... e ..., o registo Trace-Back, bem como a respetiva localização celular da ativação (com identificação da CELL ID) dos n.ºs de telemóvel ...68..., pertencente ao suspeito BB, ...70 este pertencente ao arguido AA, e ...62 e ...09 estes pertencentes à vítima CC e assim obter dados que levem à identificação do(s) autor(es) do ilícito.
Cumprindo apreciar e decidir, sempre salvo o devido respeito, desde já se anuncia que não poderemos autorizar a obtenção de tais dados.
Com efeito, dispõe o artigo 187.º, n.º1, alínea a) do Código de Processo Penal, que a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público quanto a crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.
Por outro lado, decorre do n.º 4, alínea a) da mesma norma legal que a interceção e a gravação previstas nos números anteriores podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra suspeito ou arguido (ou seja, pode o telemóvel não pertencer ao visado).
E estatui o n. º 2 do artigo 189.º do Código de Processo Penal que “a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo.”
Em termos similares, também prescreve o artigo 3.º, n.º 2 da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, que: “A transmissão dos dados às autoridades competentes só pode ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, nos termos do artigo 9.º”.
Logo prevendo o artigo 9.º, n.ºs 1 e 3 do mesmo diploma que: “A transmissão dos dados referentes às categorias previstas no artigo 4.º só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, deteção e repressão de crimes graves” relativamente a “suspeito ou arguido”.
No caso, é preciso notar que não se pretende a obtenção de dados de tráfego em tempo real, mas sim de dados referentes a comunicações ou ativações ocorridas no passado, mais concretamente nos dias 17-09-2023 e 02-10-2023.
Assim, o regime a aplicar é o da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho.
Acontece que, nos termos do art.º 4.º, n.º 1, al. c) e f) deste diploma, essas informações dizem respeito a dados de tráfego e esse normativo, bem como os seus artigos 6.º e 9.º, foram declarados inconstitucionais, pelo ac. do Tr. Constitucional n.º 268/2022, de 19-04, com força obrigatória geral.
Esse acórdão do Tribunal Constitucional segue uma interpretação conforme ao Direito Europeu e à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, pois está em causa a transposição da Diretiva n.º 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.
Não nos cabe, obviamente, nesta sede, pôr em causa ou discutir essa jurisprudência e esse acórdão. Cabe-nos tão só obedecer-lhes, face à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Não se ignoram os inconvenientes que desse acórdão resultam para a investigação e punição da criminalidade, para que o Ministério Público apela, douta e veementemente, nestes autos.
E são de todo compreensíveis as inquietações manifestadas.
Tal como se mostra clara a vantagem, na perspetiva da investigação em causa, do conhecimento dos dados requeridos pelo MP.
Mas, cremos nós, não podem os tribunais substituir-se ao legislador suprindo omissões de onde resultam esses inconvenientes.
De igual forma não podemos tentar tornear o referido acórdão do Tribunal Constitucional, “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele “fechou a porta”. Ou seja, não podemos recorrer a outras normas, ou diplomas, para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem que essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram à predita declaração de inconstitucionalidade.
Nestes termos e ao abrigo do exposto, não autorizo a obtenção dos dados de tráfego/localização celular requeridos pelo Ministério Público.»
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«A. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em 15/11/2023, Ref.ª ...27, que não autorizou a obtenção dos dados de tráfego/localização celular requeridos pelo Ministério Público, em suma, por, no seu entender, o regime que regula o requerido é o previsto nos artigos 4º, n.º1, alíneas c) e f), e 6.º e 9.º, da Lei n.° 32/2008, de 17 de julho, consequentemente, tendo tal regime sido declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 268/2022. de 19/04, «... não podemos tentar tornear o referido acórdão do Tribunal Constitucional “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele “fechou a porta”. Ou seja não podemos recorrer a outras normas ou diplomas para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas...

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