Acórdão nº 183/19.6GGSNT.L1-3 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-09-27

Data de Julgamento27 Setembro 2023
Ano2023
Número Acordão183/19.6GGSNT.L1-3
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I- Relatório
Apresenta-se a recorrer perante este Tribunal o Ministério Público discordando da decisão proferida em 12.04.2023 pelo Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 3 – do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste através da qual foram absolvidos da prática de três crimes de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo artigo 387.º, do Código Penal os arguidos CP e GP do crime.
Após motivações conclui o Ministério Público no seu recurso:
1- Dispõe o artigo 410º nº 2 c) do Código de Processo Penal que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento erro notório na apreciação da prova.
2- O indicado em 1 diz respeito à avaliação probatória ao erro que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio dele se dá conta, quando a prova é valorada contra as regras da experiência comum.
3- De acordo com o documento de fls. 100 foi exarado que não é possível estimar o período em que os canídeos evidenciavam tal condição no entanto atendendo à avaliação corporal e ausência de patologia que justifique tal condição, pode afirmar-se que o estado de magreza em que os animais se encontravam resultou da privação de alimento, bem como do grau de parasitismo e consequente diarreia.
4- Resulta também do documento indicado em 3 que o parasitismo e a diarreia são reveladoras de ausência de medidas profilácticas, nomeadamente desparasitação e de ausência de cuidados básicos durante um longo período de tempo.
5- E ainda que o traumatismo provocado pelo mosquetão no pescoço do canídeo já era antigo, desde logo pela presença de fibrose, o animal encontrava-se com o mosquetão encrustado já havia muito tempo estimando-se pelo menos um mês.
6- O documento é emanado de uma autoridade veterinária, cujos esclarecimentos prestados em tribunal pela médica veterinária, não invalidam o indicado em 3 , 4 e 5.
7- Igualmente ao abrigo do principio a que alude o artigo 127º do Código de Processo Penal, o depoimento da testemunha JS , não pode invalidar o constante no documento de fls 100 , porque não dotado de conhecimentos técnicos de igual teor que o possam invalidar.
8- Pelo que não poderia o tribunal “a quo“ ter concluído , da forma como o fez quanto à questão do estado de saúde dos canídeos , com base nos esclarecimentos complementares da medica veterinária , e da testemunha JS.
9- Desta forma incorreu em erro notório na apreciação da prova.
10- Quanto ao elemento subjectivo, concluiu o tribunal que pese embora se tenha provado que os animais pertenciam aos arguidos, e foram resgatados na sua habitação em estado de subnutrição e um deles com uma ferida na zona do pescoço, o contexto de saída não voluntária de casa afastam os elementos do crime, quer objectivos quer subjectivos, e consequentemente o dolo do crime.
11- O contexto de saída de casa da arguida para uma casa de abrigo, e o arguido para uma situação de reclusão, bem como o facto dos canídeos terem ficado sem cuidados de 13 a 18 de Abril de 2019, não configura de acordo com a douta sentença o preenchimento do tipo de ilícito
12- - Não podemos concordar, com o indicado em 11, tendo por base o parecer medico veterinário, constante do documento de fls. 100.
13- Resultou do mesmo que a situação de privação / lesão ocorreu antes da ausência dos arguidos da habitação.
14- A situação de omissão de cuidados iniciou-se antes num período de tempo anterior a 13 – 18 de Abril de 2019, tendo por isso os arguidos o domínio do facto, em data anterior à sua saída da habitação. No caso da privação de alimento muito tempo antes, e no caso do mosquetão pelo menos um mês antes.
15- Após a saída de casa da arguida e a reclusão do arguido a sua conduta omissiva perdurou, e agravou o estado de saúde dos animais, pois não diligenciaram no sentido dos cuidados necessários devidos e impostos lhes serem prestados.
16- Daí se poder concluir que se tratou em ambos os caos de uma omissão relevante do ponto de vista do direito penal, tendo aqueles agido voluntaria e conscientemente tendo a sua omissão sido causal em relação ao estado de saúde dos animais que os arguidos admitiram como consequência necessária das suas condutas omissivas.
17- Devem os arguidos ser condenados pela pratica de um crime p. p nos termos do artigo 387º nº 1 do Código Penal.
Ao assim recorrido os arguidos não responderam.
O Ministério Publico junto desta instância lavrou parecer onde refere: “A posição da Magistrada do Ministério Público na 1.ª instância, expressa na motivação de recurso, merece a nossa concordância, uma vez que, de acordo com elementos probatórios carreados para os autos, designadamente do parecer médico-veterinário, resulta com clareza que a situação de privação e de cuidados de saúde remontaram a período anterior ao do resgate dos cães.
Assim e sem necessidade de apresentar considerações adicionais, emitimos parecer no sentido da procedência do recurso.”
Os autos foram a vistos e à conferência.
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II - Fundamentação
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artº 412º nº 1 do Código do Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Pretende o recorrente ver apreciadas as seguintes questões:
a) A existência de erro notório na apreciação da prova;
b) A proceder tal questão as consequências daí advenientes, mormente a questão da subsunção jurídica e a escolha da pena.
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III- Da decisão recorrida
Previamente às questões suscitadas, vejamos quais os factos provados e não provados e a sua fundamentação.
Assim, fez-se constar na decisão (transcrição):
“Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados e não provados os factos que seguem, com interesse para a decisão[1], sendo os restantes factos alegados conclusivos[2] e/ou matéria de direito:
1. Os arguidos GP e CP detiveram consigo, em conjunto, na sua residência sita no nº … da Rua …., na localidade de Almargem do Bispo, desde data não concretamente apurada, no ano de 2013 até 13 de Abril de 2019, três canídeos de raça indeterminada.
2. A arguida CP deixou de residir naquela residência desde 13 de Abril de 2019.
3. No dia 18 de Abril de 2019 os canídeos apresentavam-se subalimentados, com as costelas e vértebras lombares, ossos pélvicos e todas as saliências ósseas visíveis à distância e com parasitas.
4. Um dos canídeos apresentava ainda uma ferida na zona central do pescoço causada por mosquetão que perfurava a pele do pescoço de um lado a outro, desde data não concretamente apurada.
Mais se provou que:
5. A arguida CP deixou a habitação na data acima referida, em contexto de violência doméstica pela qual denunciou o arguido e que deu origem ao processo n.º ….., do Juízo …. vindo a ser acolhida em Casa Abrigo.
6. Nessa data o arguido ausentou-se também da habitação comum, não mais aí se tendo dirigido e vindo a ser detido e preso preventivamente, à ordem do referido processo, em 17.05.2019.
7. Os canídeos foram resgatados pelas autoridades competentes após alerta dos vizinhos dos arguidos, que se aperceberam que os animais se encontravam sozinhos há cerca de uma semana, sem a presença/cuidados dos donos.
2. Factos não provados
A. Desde 13 de Abril de 2019, os canídeos ficaram ao cuidado do arguido GP.
B. O estado de magreza que os referidos canídeos evidenciavam resultou da privação prolongada de alimentos, bem como do parasitismo e consequente diarreia e estas patologias da ausência de medidas profiláticas, nomeadamente desparasitação.
C. O canídeo referido supra em 4 encontrava-se com o mosquetão encrustado no pescoço desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde um mês antes da data da sua verificação, ou seja, desde 18 de Março de 2019.
D. Os arguidos actuaram com o propósito concretizado de privar os três canídeos que detinham, da alimentação de que necessitavam, bem com os cuidados de vacinação e assistência médica veterinária regular, admitindo como possível que dessa conduta viesse a resultar dor e sofrimento, tendo-se conformado com o resultado.
E. Agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
III. Motivação da matéria de facto
A formação da convicção do Tribunal teve por base a apreciação crítica da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, à luz das regras da experiência comum e segundo juízos lógico-dedutivos.
A arguida CP, apesar de regularmente notificada, não compareceu em julgamento, nada tendo contribuído para a prova dos factos.
Por sua vez, o arguido GP prestou declarações em que negou ter assumido uma acção maltratante para com os canídeos, os quais admitiu serem seus e da sua ex-companheira; justificou o estado de subnutrição/parasitação com que os animais foram resgatados, com o facto de ser a arguida quem providenciava pelas suas idas ao veterinário, assim tentando desresponsabilizar-se por eventuais problemas de saúde dos mesmos; mais referiu que CP saiu de casa após uma queixa contra o mesmo por crime de violência doméstica que despoletou o respectivo processo criminal, no âmbito do qual veio a ser preso preventivamente – tendo sido por força desse facto que deixou de se deslocar à habitação comum, em simultâneo com a co-arguida.
Foi ainda inquirido JS, vizinho dos arguidos, o qual referiu ser usual ver o arguido GP passear os seus canídeos na rua, nunca se tendo apercebido de que os animais eram maltratados, nomeadamente que se encontrassem subalimentados; explicou que em determinada ocasião, e tendo de deixado de ver os arguidos, seus vizinhos, que foi alertado por uma outra vizinha – a testemunha NN,
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