Acórdão nº 179/23.3T9TCS.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2024-04-10

Data de Julgamento10 Abril 2024
Ano2024
Número Acordão179/23.3T9TCS.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (GUARDA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TRANCOSO))
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Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

Relatório


AA interpôs recurso da sentença proferida no processo de recurso de contraordenação n.º ..., do Juízo de Competência Genérica ..., Comarca da Guarda, que manteve a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que determinou a cassação do seu título de condução n.º ...92.

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1.1. Sentença recorrida

(transcrição da parte relevante para a apreciação do recurso):


“(…) Factos provados
1. Por sentença datada de 11.12.2017, proferida pelo Juízo de Competência Genérica ..., no âmbito do Proc. n.º 114/17...., já transitada em julgado, foi o Recorrente condenado, pela prática do crime de desobediência, entre o mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses e quinze dias.
2. Como consequência da condenação na referida pena acessória, foram subtraídos ao Recorrente 6 (seis) pontos.
3. Por sentença datada de 01.06.2021, proferida pelo Juízo de Competência Genérica ..., no âmbito do Proc. n.º 13/21...., já transitada em julgado, foi o Recorrente condenado, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, entre o mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses.
4. Como consequência da condenação na referida pena acessória, foram subtraídos ao Recorrente 6 (seis) pontos.
5. Por sentença datada de 21.06.2022, proferida pelo Juízo de Competência Genérica ..., no âmbito do Proc. n.º 58/22..., já transitada em julgado, foi o Recorrente condenado, pela prática do crime de desobediência, entre o mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses.
6. Como consequência da condenação na referida pena acessória, foram subtraídos ao Recorrente 6 (seis) pontos.
7. O Recorrente exerce a profissão de taxista, auferindo um montante mensal compreendido entre os € 300,00 e os € 400,00.
8. Reside sozinho.
9. Suporta despesas mensais no valor de € 150,00.

(…)

Com a Impugnação Judicial apresentada, pretende o Impugnante reverter a decisão adotada pela A.N.S.R. de cassação do seu título de condução, por considerar que a mesma padece de determinados vícios que impõem a sua revogação.

Pese embora sejam algumas as questões suscitadas pelo Recorrente, em bom rigor, todas elas se reconduzem à questão de saber qual a natureza da cassação da carta de condução prevista no artigo 148.º do CE.

Como tal, importa fazer um breve enquadramento legal deste regime.

Nos termos do artigo 121.º do CE, a condução de veículo a motor na via pública só é permitida a quem for titular de carta de condução, a qual é emitida por entidade pública e mediante prova do preenchimento dos requisitos legais.

A obtenção e manutenção da faculdade de condução de veículos a motor na via pública está sujeita a um regime que se encontra previsto no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir e no Código da Estrada, o qual inclui o mencionado sistema de pontos.

Deste modo, com a entrada em vigor da Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, o legislador estabeleceu um sistema de “carta por pontos”, atribuindo, ab initio, a cada condutor, 12 (doze) pontos, fixando igualmente um conjunto de circunstâncias que determinam a atribuição ou a perda de pontos e estabelecendo as respetivas consequências, nos termos conjugados dos artigos 121.º-A e 148.º, ambos do CE.

Do recorte do quadro legal introduzido pela Lei supra identificada resulta que o propósito do sistema de pontos foi precisamente o de incutir nos condutores uma melhor perceção das consequências associadas às infrações cometidas no contexto rodoviário, reforçando o sistema com uma reação, de natureza administrativa, que ultrapasse a pena acessória/sanção de proibição de conduzir, que se revelaram insuficientes para sensibilizar o infrator no sentido de adequar o exercício da condução às normas vigentes.

São, assim, razões de natureza preventiva, de controlo e sinalização da perigosidade dos condutores e de índole pedagógica que estão na origem da criação deste regime, comum em vários países da Europa.

De forma sucinta, mas bastante assertiva, com a qual se concorda e sem necessidade de maiores considerações, conclui o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 260/2020 [disponível em www.tribunalconstitucional.pt], que “[o] regime tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado” (realce e sublinhado nossos).

Ora, para o que aqui interessa, dita o n.º 2 do artigo 148.º do CE que “a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.° 3 do artigo 282.°do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.°3 do artigo 281.° do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor”.

Do cotejo da matéria provada resulta que, em virtude da condenação em diversas penas acessórias resultantes da prática de crimes, o Recorrente perdeu a totalidade dos pontos que lhe estavam atribuídos.

A perda da totalidade de pontos dá origem a processo autónomo onde é ordenada a cassação da carta de condução – cf. artigo 148.º, n.º 4, al. c) e n.º 10 do CE – pelo que a autoridade administrativa mais não fez do que aplicar o regime legal previsto, não lhe podendo ser assacada qualquer irregularidade neste campo.

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Debruçando-nos especificamente sobre os vícios invocados pelo Recorrente, surge desde logo a alegada violação do disposto no artigo 30.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

Dispõe o aludido preceito legal que “[n]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.

Significa esta proibição que a aplicação de uma pena não pode ser acrescida de forma automática, isto é, ope legis, sem intervenção de uma decisão, de uma outra pena que implique perder direitos civis, profissionais ou políticos.

Entende, então, o Recorrente que a cassação da carta de condução, decorrente da prática de crimes pelos quais foi condenado, se traduz na imposição automática da perda de direitos, nomeadamente da perda automática do direito de conduzir veículos, o que afeta o seu direito ao trabalho (porquanto exerce a profissão de taxista).

Mas, de facto, assim não é.

Conforme vem sido entendido pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, “[o] que decorre da prática do crime é a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir, a qual, sendo um efeito da prática do crime de condução em estado de embriaguez, não é automático no sentido legalmente proibido - porquanto não é um efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno da pena, que é o que verdadeiramente justifica o nº 4 do artigo 30º da CRP -, para além de ser sujeita na sua aplicação aos princípios da proporcionalidade e da culpa. Acresce que a aplicação da pena acessória é mais um efeito da prática do crime do que da aplicação de uma pena (veja-se a circunstância de poder não haver aplicação de uma pena - no caso de suspensão provisória do processo - e continuar a haver a imposição da pena acessória)[1].

Daqui resulta que o efeito automático que resulta da aplicação da pena acessória de proibição de conduzir é a subtração de pontos da carta de condução, a qual não configura, em si mesma, uma perda de direitos civis, profissionais ou políticos.

O que sucede posteriormente, quando a perda de pontos é total, é precisamente a cassação do título de condução, que emerge do sucessivo comportamento estradal que foi sendo adotado pelo condutor e que conduziu, progressivamente, à retirada de pontos, até à sua total inexistência.

Face ao exposto, conclui-se que inexiste qualquer violação do comando constitucional ínsito no artigo 30.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, indeferindo-se a alegação do Recorrente a este respeito.

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Na Impugnação apresentada, o Impugnante alega igualmente a inobservância do princípio da proporcionalidade, também com assento constitucional, no artigo 18.º, n.º 2 da C.R.P.

Em concreto, invoca o Impugnante o seguinte: (i) por um lado, não foi ponderada a necessidade prática de aplicação, no caso concreto, da cassação da carta de condução, não havendo valoração da prevenção especial e (ii) por outro lado, a sanção aplicada afigura-se demasiado gravosa, não tendo sido tomados em consideração na decisão proferida fatores relativos à pessoa do Impugnante e às suas necessidades, nomeadamente profissionais.

Cumpre apreciar e decidir.

Conforme já supra enunciado, o sistema da carta por pontos foi instituído com vista a avaliar a idoneidade de uma determinada pessoa para a prática da condução e, desse modo, controlar a perigosidade associada à atividade desenvolvida.

Bem se compreende o sistema instituído pelo legislador: ao longo do tempo, afigura-se necessário avaliar a manutenção da idoneidade do condutor, por forma a preservar a segurança...

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