Acórdão nº 1506/21.3BELSB-A de Tribunal Central Administrativo Sul, 2022-03-17

Ano2022
Número Acordão1506/21.3BELSB-A
ÓrgãoTribunal Central Administrativo Sul
Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I Relatório
P......, LDA, devidamente identificado nos autos, no âmbito da Providência Cautelar, que apresentou contra o Município de Lisboa, na qual requereu a “a suspensão de eficácia do ato de 26.05.2021 proferido por este último, nos termos do qual terá determinado a implementação de concretas medidas de controlo de ruído no prazo máximo de 30 dias no lugar do estabelecimento comercial por si gerido, sob pena de aplicação de medidas cautelares mais gravosas”, inconformado com a decisão proferida em 9 de dezembro de 2021, no TAC de Lisboa ao se ter declarado materialmente incompetente, veio em 28 de dezembro de 2021 recorrer para esta instância, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“A. O Tribunal a quo declarou-se absolutamente incompetente, em razão da matéria, para apreciar a presente ação, absolvendo a Requerida da mesma.
B. Em suma, o Tribunal a quo assim decidiu porque considerou assente na jurisprudência que “o ato que ordena a instauração de um processo de contraordenação, porque se insere no procedimento contraordenacional, está excluído do âmbito da jurisdição administrativa.”
C. Sucede que o ato que se impugnou – e que nos presentes autos se pediu a suspensão da sua eficácia – não se esgota com a decisão de instaurar um procedimento contraordenacional.
D. Refere o Tribunal a quo: “Mas não só: a mesma conclusão é de aplicar ao segundo segmento da decisão suspendenda, nos termos da qual o Requerido intimou a Requerente “a proceder às correções necessárias, devendo ser efetuada uma Avaliação Acústica após a conclusão dos trabalhos, onde se demonstre o cumprimento dos requisitos legais” (este segmento relativo à decisão de intimar a Requerente a tomar certas e determinadas medidas)”.
E. Sucede também que o segundo segmento da decisão suspendenda não refere o que o Tribunal a quo citou – trata-se de uma transcrição que resulta do processo instrutor (que a Requerente só teve conhecimento após dar entrada do presente processo) mas não do ofício.
F. Através do ofício n.º 85/DAE/DAEC/DMAEVCE/CML/21, datado de 26.05.2021, foi a Requerente notificada do despacho da Senhora Chefe da Divisão do Ambiente e Energia, datado 19.05.2021, que tem o seguinte teor: (…) “Assim, face à ilegalidade detetada, cuja manutenção poderá vir a causar aos residentes, onde se fazem sentir os efeitos das fontes de ruído, danos à sua saúde ou, pelo menos, ao seu bem-estar e tranquilidade, e a fim de evitar a aplicação de medidas cautelares mais gravosas, no âmbito do procedimento contraordenacional, fica pelo presente ofício notificado a implementar as necessárias medidas de controlo de ruído, que garanta o cumprimento do estipulado no mencionado artigo 13º do RGR. Tais correções deverão ser implementadas no prazo de 30 dias úteis, a contar da data desta notificação, após o que deverão remeter documento descritivo das medidas implementadas.”
G. Quanto a esta matéria refere ainda o Tribunal a quo que: “Ora, ao intimar a Requerente “a proceder às correções necessárias, devendo ser efetuada uma Avaliação Acústica após a conclusão dos trabalhos, onde se demonstre o cumprimento dos requisitos legais”, “a fim de evitar a aplicação de medidas cautelares mais gravosas, no âmbito do procedimento contraordenacional” (cf. factos 4. e 5. firmados supra), e considerando que, como se viu, essa mesma aplicação de medidas cautelares apenas pode ter lugar no âmbito do próprio procedimento contraordenacional, nos termos conjugados do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17.01, e do artigo 41.º da Lei n.º 50/2006, de 29.08, facilmente se constata que a decisão suspendenda não encerra qualquer conteúdo decisório per se, não se alvitrando, em momento algum, a imposição ou definição de um qualquer efeito jurídico sobre a Requerente (a qual, a vir a ter lugar, apenas sucederá no procedimento contraordenacional instaurado), mas tão-somente – e no limite – uma mera recomendação à adoção de uma conduta, circunstância que sempre obstaria ao conhecimento do mérito da causa, por força do disposto no artigo 89.º, n.º 4, alínea i), do CPTA, com efeitos reflexos ao nível dos presentes autos cautelares, os quais, como é sabido, são necessariamente instrumentais à ação principal de que dependem”
H. Ora, não se pode concordar com a decisão do Tribunal a quo.
I. Em primeiro lugar, porque – ainda que se considerem todos os atos anteriores como atos instrutórios de um procedimento contraordenacional – sempre se deverá relembrar que, para todos os efeitos, o ofício comunica a instauração de um procedimento cautelar ainda ao abrigo de um anterior processo que não tem natureza contraordenacional.
J. E tal conclusão infere-se, desde logo (se dúvidas existem), porque o ofício refere expressamente que “procedimento será instaurado pela Divisão de Contraordenações desta Autarquia”.
K. Em segundo lugar, porque, salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo, que é muito, não é verdade que “que a decisão suspendenda não encerra qualquer conteúdo decisório per se, não se alvitrando, em momento algum, a imposição ou definição de um qualquer efeito jurídico sobre a Requerente (a qual, a vir a ter lugar, apenas sucederá no procedimento contraordenacional instaurado), mas tão-somente – e no limite – uma mera recomendação à adoção de uma conduta”.
L. Ora, não há dúvidas, aliás como já se afirmou, que não estamos na presença de uma mera recomendação quando é certo que o ofício refere expressamente que “a fim de evitar a aplicação de medidas cautelares mais gravosas, no âmbito do procedimento contraordenacional, fica pelo presente ofício notificado a implementar as necessárias medidas de controlo de ruído, que garanta o cumprimento do estipulado no mencionado artigo 13º do RGR. Tais correções deverão ser implementadas no prazo de 30 dias úteis, a contar da data desta notificação, após o que deverão remeter documento descritivo das medidas implementadas”.
M. Ora, aqui o Requerido faz uma ameaça (ainda que velada…) no sentido de, no limite, poder vir a ser o estabelecimento da Requerida encerrado.
N. Portanto, o Requerido refere expressamente a existência de um dever: o munícipe deve atuar de determinada maneira, num determinado prazo, sob pena de, desobedecendo, sofrer consequências no âmbito de um processo de contraordenação que ainda não tinha sido instaurado.
O. Não há dúvidas de que estamos na presença de um ato administrativo.
P. Como nos ensina Freitas do Amaral, um ato administrativo “é o ato jurídico unilateral praticado por um órgão da administração no exercício do poder administrativo e que visa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto” (cf. Direito Administrativo, Vol. III, p. 66).
Q. Face ao exposto, como podemos entender que aquele segmento decisório é apenas uma mera recomendação?
R. Não pode ser só uma recomendação, pois as recomendações não são dotadas de elementos hábeis a coagir o munícipe: neste caso é por demais evidente que se trata de uma intimação à adoção de um determinado comportamento – a cumprir num prazo de 30 dias – sob pena da aplicação de medidas mais gravosas.
S. E também não há dúvidas que aquele ato administrativo foi praticado ao abrigo do Processo n.º 14193/CML/20 e não ao abrigo do processo de contraordenacional que com aquele ato terá sido intentado.
T. O que não pode acontecer é ficar a Requerente sem qualquer tipo de tutela judicial: viu-se obrigada a alterar o seu comportamento – ao não o fazer poderia desde logo incorrer em consequências mais gravosas – sem que sequer exista um procedimento contraordenacional contra si instaurado.
U. Não pode acontecer que a Requerida fique sem a possibilidade de se defender – ficando à mercê de uma medida cautelar sem que se possa defender das ilegalidades cometidas pelo Requerido!
V. Como poderia a Requerida defender-se contra esta verdadeira ameaça/intromissão na esfera jurídica da Requerida por parte do Município?
W. Não há dúvidas de que estamos na presença de um ato administrativo que não foi praticado sob o chapéu de um processo contraordenacional, pois como o próprio Tribunal a quo referiu na sua sentença “como se viu, essa mesma aplicação de medidas cautelares apenas pode ter lugar no âmbito do próprio procedimento contraordenacional”.
X. Tal declaração terá de ser entendida (a contrario) como a própria confirmação do Tribunal de que aquele ato foi praticado ao abrigo de um processo que não é contraordenacional – a única diferença de “posições” entre a Requerente e o Tribunal a quo é que este último considera que aquela atuação foi apenas uma recomendação e a Requerente, por outro lado, considera ter existido um verdadeiro ato administrativo, com uma ordem para cumprir num determinado prazo sob pena de consequências mais gravosas a aplicar no âmbito de um outro processo (o processo de contraordenação).
Y. Por se tratar de um ato administrativo praticado ao abrigo de um processo que não tem natureza contraordenacional, deverá a decisão de que se recorre ser revogada e substituída por outra que considere o Tribunal a quo como competente para julgar a...

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