Acórdão nº 150/01.6IDBGR.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 2024-01-23

Data de Julgamento23 Janeiro 2024
Ano2024
Número Acordão150/01.6IDBGR.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam os Juízes Desembargadores, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. Decisão recorrida
No âmbito do processo n.º 150/01...., que corre os seus termos no Juízo Local Criminal ..., foi proferido despacho, datado de 26.05.2023, que indeferiu o cancelamento definitivo no registo criminal da sentença que ali condenara o arguido AA – melhor identificado nos autos – na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 4,50, pela autoria material de um crime de abuso de confiança fiscal simples, na forma continuada, p. e p. pelo art. 24.º, n.º 1, do DL 20-A/90, de 15 de Janeiro (na redacção introduzida pelo DL 394/93, de 24 de Novembro), bem como pelo art. 105.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (na redacção originária), com referência ao art. 30.º, n.º 2, do Código Penal.

2.
Recurso
Inconformado com esta decisão, o referido arguido recorreu da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
“(…)
1ª Vem o presente recurso interposto do douto despacho de 29/05 e de 3/7 transato que indeferiu a descriminalização da conduta pela qual o recorrente foi condenado nos presentes autos e o cancelamento no registo criminal da condenação.
2ª O recorrente foi condenado em 10 de Maio de 2004 pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada previsto e punido pelo artº 24º nº1 do D.L. 20-A/90 de 15 de Janeiro (RJIFNA) e pelo artº 105º nº1 do RGIT na sua versão originária na pena de 120 dias de multa à razão diária de 4,5 €, perfazendo um total de 540 € por factos que se reportavam à falta de pagamento e retenção de IRS devido pelo trabalho dependente, independente e rendimentos prediais, sendo a prestação tributária mais alta no valor de 449.024$00, ou seja 2.239,72 €. referente ao mês de agosto de 1999 (cfr. o quadro 1 do 3.º parágrafo da factualidade dada como provada e o primeiro parágrafo de fls. 595).
3ª A norma punitiva do artº 24º RJIFNA, tal como quase todo o diploma legal, foram revogados pelo artº 2º al. b) da Lei 15/01 de 5/6 preambular ao novo RGIT, que manteve a incriminação na sua versão originária, no seu artº 105º nº1 sem dependência do valor da quantia apropriada.
4ª Entretanto, o artº 113º da Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro, alterou a redação do artigo 105.º, n.º 1 do RGIT, com efeitos a partir de 1/1/09 (cfr. o artº 174º da Lei 64-A/08 de 31 de Dezembro).
5ª E a partir do dia 1 de janeiro de 2009, o artigo 105º, n.º 1 do RGIT passou a ter a seguinte redacção:
“Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária superior a € 7.500,00, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
6ª Ou seja, a partir da entrada em vigor desta disposição legal a conduta do arguido que se apropria de prestação deduzida nos termos da lei apenas é punido criminalmente se tal prestação for superior a 7.500 €.
7ª Sendo que os valores a ter em conta para efeito da incriminação eram aqueles que devessem constar da declaração – artº 105º nº7 do RGIT (cfr. A jurisprudência supra citada).
8ª No caso concreto, o recorrente foi condenado nos presentes autos pela falta de pagamento e retenção de IRS devido pelo trabalho dependente, independente e rendimentos prediais, tendo sido a prestação tributária mais alta no valor de 2.239,72 €, referente ao mês de Agosto de 1999.
9ª Daí que, no caso dos autos, a quantia retida ou não entregue é inferior a 7.500,00€, pelo que nos termos do disposto no artº 2º nº2 do Código Penal e do artº 29º nº4 da Constituição, a conduta do recorrente foi descriminalizada.
10ª E isto é assim, independentemente do trânsito em julgado da sentença e do cumprimento da pena, como decorre inequivocamente do artº 2º nº2 do Código Penal (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 4ª edição actualizada, pág. 89, Miguez Garcia e Castel Rio, in Código Penal – Parte Geral e Especial, pag. 34 e Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, 2ª edição, tomo I, pag. 199).
11ª Com a entrada em vigor do artº 105º nº1 do RGIT, na redacção do artº 113º da Lei 64-A/2008 de 31 de Dezembro, “é inquestionável que deixaram de ser punidas as condutas em que o valor da prestação tributária - o de cada declaração a apresentar à administração tributária, de acordo com o n° 7 do referido art. 105° - não excede € 7.500.”- cfr. Cruz Bucho no estudo “A Lei do OE de 2009 e o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social”, publicado in https://www.trg.pt/ficheiros/estudos/cruzbucho_abusoconfiancasegurancasocial. pdf
12ª Pelo exposto, a conduta do recorrente deve ser considerada descriminalizada desde 1/1/09, conforme o requerido.
13ª Sendo descriminalizada a conduta do arguido, devem cessar os seus efeitos penais, designadamente no registo criminal (cfr. o artº 2º nº2 do Código Penal).
14ª Na verdade, o registo criminal serve para registar crimes. Não consubstanciando a conduta praticada crime não pode esta constar do registo criminal do recorrente.
15ª A inscrição de condenações que, como a dos autos, deixaram de ter impacto no cumprimento do desígnio de constituir meio de prova dos antecedentes criminais do arguido e, como tal de contribuir para que o julgador escolha a pena e determine a sua medida, violam o princípio da necessidade do registo criminal apontado por Figueiredo Dias (cfr. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 645/647).
16ª E “(…) se um dos objectivos que preside à aplicação de uma pena é a ressocialização do arguido, a existência de um certificado onde constem desnecessários antecedentes criminais de um arguido, estará em contradição com esta vertente, pois estes fomentam e facilitam não a sua reintegração, mas sua estigmatização e abandono social” – Catarina Veiga, in “Considerações sobre a relevância dos antecedentes criminais do arguido no processo penal”, Almedina, 2000, pag. 95.
17ª Claro está que se a nova redação de uma norma descriminaliza determinada conduta – artº 2º nº2 do Código Penal - e, por força dessa descriminalização devem cessar todos os efeitos penais de tal conduta, a decisão que condenou na conduta anteriormente prevista deverá ser considerada sem efeito, nos termos do disposto no art. 11.º n.º 4 al. d) da Lei 37/15 de 05.05.
18ª Daí que, o registo da condenação destes autos deve ser cancelada.
19ª Os despachos recorridos violaram ou fizeram errada aplicação do disposto nas normas referidas na motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidas breviatis causa, não podendo, pois, manter-se.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, serem revogados os despachos recorridos e substituídos por acórdão que decrete a descriminalização da conduta do recorrente e, consequentemente, o cancelamento definitivo do averbamento no Registo Criminal, da condenação dos presentes autos, por só assim se fazer JUSTIÇA.
(…)”.

3. Resposta ao recurso
Após a admissão liminar do recurso, o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu a este recurso nos seguintes termos (transcrição):
“(…)
1.O arguido, AA, foi condenado, por sentença proferida em 10.05.2014 transitada em julgado em 25.05.2004, pela prática, em 11.07.2002, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art.º 24.º n.º 1 do DL 20-A/90 de 15 de Janeiro e DL 394/93 de 24 de Novembro, na pena de 120 dias de multa à razão diária de €4,5.
2. A pena foi declarada extinta por decisão de 18.11.2004, verificando-se caso julgado.
3. A actual redacção do art.º 105.º n.º 1 do RGIT não cabe na previsão legal da alínea d) do n.º 4 da Lei da identificação criminal.
4.Nenhuma censura merece o despacho recorrido, que não violou nenhum dos preceitos legais invocados, ou quaisquer outros.
5.Não se mostram, pois, violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais,
(…)”.

4. Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista à Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, a qual emitiu parecer pugnando pela improcedência total do recurso.

Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório e o recorrente reiterou a sua pretensão recursória.

Efectuado exame preliminar, foi determinado que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO

A) Objecto do recurso
Em conformidade com o disposto no art.º 412.º do Código do Processo Penal (CPP) e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo, importa apreciar as seguintes questões:
· Alteração do tipo legal e despenalização de determinadas condutas;
· Imposição da retroactividade da lei penal mais favorável ao caso concreto;
· Cessação dos efeitos penais da condenação.

B) Apreciação do recurso

1. Decisão recorrida
A decisão recorrida apresenta, na parte que interessa, o seguinte teor no plano da fundamentação de facto (transcrição):
“(…)
--- Req. de 03.04.2023: O arguido AA veio requerer que se declarasse descriminalizada a conduta do arguido desde 1/1/09 e que se ordenasse o cancelamento da condenação nos presentes autos no registo criminal. ---
--- Alega, para tanto e em síntese, que o arguido por sentença proferida no âmbito dos presentes autos em 10 de Maio de 2004 foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada previsto e punido pelo artº 24º nº1 do D.L. 20-A/90 de 15 de Janeiro na pena de 120 dias de multa à razão diária de 4,5 €, perfazendo um total de 540 € por factos que se...

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