Acórdão nº 148/19.8GDLRS.L1-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2022-02-17

Ano2022
Número Acordão148/19.8GDLRS.L1-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO


1.1.A assistente veio interpor recurso do douto despacho do J4, do Juízo Local Criminal de Loures do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, que rejeitou, por manifestamente infundada, a acusação por ela deduzida contra AA pela prática de crimes de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
1ª-Decidiu o Tribunal “a quo”, proferir despacho de rejeição da acusação particular deduzida pela Assistente BB contra a arguida AA quanto à prática do crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º, n.º 1, do C. Penal, por considerar que a mesma não refere a totalidade dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo, padecendo, desse modo, da nulidade resultante do n.º 3 do art. 283º do C.P.Penal (aplicável por força do n.º 3 do art. 285º do mesmo diploma legal).
2.ª-Para o efeito, entendeu, o M.º Juiz “ a quo”, que “… o que sucede na acusação particular formulada é que o elemento subjectivo se mostra omisso, uma vez que ainda que se mostre enunciada a intenção, por parte do arguido de, com as descritas expressões, ofender a honra e consideração do assistente, ou seja, não se encontra descrito nenhum facto relativo à consciência da ilicitude”, considerando-a “manifestamente infundada”.
3ª-Salvo o devido respeito – que é muito -, não assiste qualquer razão ao Tribunal “a quo”, como resulta do teor da acusação particular deduzida a fls. …, que aqui se dá por integralmente reproduzida para os legais efeitos, uma vez que não se verifica “in casu”, a ausência de qualquer dos requisitos previstos no art.º 311.º do CPP que conduzam à rejeição da acusação por manifestamente infundada.
4ª-Veja-se, a este respeito, o entendimento defendido pelo Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão proferido a 24-02-2015 (Processo nº 1548/13.2TAFAR.E1, disponível em www.dgsi.pt):
“ (…) Apesar de a acusação particular não fazer qualquer referência à fórmula consagrada na praxis judiciária, “o arguido agiu deliberada livre e conscientemente, bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta”, ou outra equivalente, a mesma não respeita ao tipo objetivo ou subjetivo, contrariamente ao que se refere no despacho recorrido, e relativamente aos crimes do chamado direito penal clássico, como sucede no caso presente, a mesma não tem que constar da acusação e da sentença por respeitar à imputabilidade e à consciência da ilicitude, de que cuja verificação positiva em cada caso não cumpre fazer prova, ainda que indireta, por estar a mesma implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito.
Na verdade, tal como decidimos em acórdão de 05.03.2013, proferido no processo 5689-11.2TDLSB.E1 (acessível em www.dgsi.pt) o “conhecimento da ilicitude” não integra o tipo, não se encontrando abrangido pelo dolo, respeitando antes à culpa. (…) Daí que a consciência da ilicitude enquanto facto psicológico de conteúdo positivo não tenha que ser alegada e provada em cada caso, pelo menos nos chamados “crimes em si” do direito penal clássico onde se insere o crime de injúria aqui em causa – tal como não tem que ser alegada a ilicitude do facto indiciada pelo preenchimento do tipo legal -, contrariamente ao que sucede com os factos que correspondem ao dolo e, eventualmente, a outros elementos subjetivos do tipo, sem prejuízo da alegação e prova dos factos integradores de eventual causa de justificação ou de exclusão da culpa, quando estejam em causa. (…)
Também do ponto de vista processual esta perspetiva se confirma, em nosso ver, pois ao contrário da factualidade que integra os elementos do tipo legal, que deve constar necessariamente da acusação, conforme expresso no art.º 283º nº 3 al. b) do CPP, por imposição dos princípios do acusatório, do contraditório e da vinculação temática ao objeto do processo, estes princípios em nada são postos em causa com a falta de menção da apontada fórmula sacramental positiva (“o arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta”) ou equivalente. Na verdade, fora dos casos em que se discuta a realidade negativa correspondente, o tribunal não autonomiza o julgamento sobre factos que pudessem reconduzir-se a uma verificação positiva da imputabilidade e da consciência da ilicitude, pelo menos quando estão em causa crimes que integram o chamado direito penal clássico (…).”
5ª-A acusação particular deduzida pela Assistente tem todos os elementos necessários e imprescindíveis para assegurar a sujeição da Arguido a julgamento pelos factos constantes da mesma (prática do crime de difamação).
6ª-Da mesma consta que a Arguida teceu comentários acerca da pessoa e do comportamento da Assistente, perante terceiros, que bem sabia serem falsos, com o intuito de humilhar (fazer perder o orgulho e amor-próprio; fazer sentir inferior, desprezível ou sem valor - cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) e de vexar (causar vergonha; fazer ficar envergonhado, constrangido ou magoado - cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) a Assistente, tendo a sua conduta sido voluntária (deliberada, intencional, que decorre da livre vontade e que não está sujeita a imposições exteriores - cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa) e consciente, bem sabendo que aquelas afirmações eram susceptíveis de atingir a honra e a consideração da Assistente, o que veio a acontecer – veja-se, neste sentido, o teor dos arts. 31º, 32º, 33º, 34º, 35º, 36º e 37º da acusação particular, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os legais efeitos.
7ª-A fórmula “bem sabendo ser proibida por lei a sua conduta” – que não consta da acusação particular deduzida - não respeita ao tipo objetivo ou subjetivo, e relativamente aos crimes do chamado direito penal clássico, como sucede no caso concreto, a mesma não tem que constar da acusação por respeitar à consciência da ilicitude, de que cuja verificação positiva em cada caso não cumpre fazer prova, ainda que indireta, por estar a mesma implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito.
8ª-Na acusação particular refere-se que a Arguida proferiu as expressões aí identificadas no intuito de humilhar e vexar a Assistente, bem sabendo que aquelas expressões eram susceptíveis de atingir a honra e consideração da Assistente, daí se retirando que a Arguida não só conhecia o potencial ofensivo e humilhante das expressões em causa, como também conhecia o desvalor das mesmas.
9ª-A decisão ora recorrida parte da ausência da afirmação da consciência da ilicitude através de uma fórmula vulgarmente utilizada na prática judiciária, ou seja, da falta de uma imputação expressa.
10ª-Todavia, os factos pertinentes estão contidos na acusação particular, não se verificando a omissão de qualquer dos requisitos previstos no nº 3 do art.º 283.º do CPPenal.
11ª-Ao tecer sobre a Assistente as afirmações e considerações constantes da acusação particular, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para os legais efeitos, a Arguida quis ofender a honra e consideração da Assistente e tinha consciência da censurabilidade penal de tal conduta, pois com tal factualidade resulta integrada a correspondente componente subjectiva do tipo, ao nível da vontade e da representação do ilícito.
12ª-A acusação particular deduzida pela Assistente descreve factualidade temporal e espacialmente localizada, objectivamente lesiva da honra e consideração da Recorrente, aí se descrevendo com rigor as expressões ofensivas, as circunstâncias em que foram dirigidas à ora Recorrente, bem como qualifica a actuação da Arguida como voluntária e consciente.
13ª-A inexistência na acusação particular deduzida da expressão “bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei” não desencadeia de modo automático a impunibilidade da conduta de modo a justificar a rejeição da acusação.
14ª-Na situação descrita na acusação particular, estamos perante a prática doo crime de difamação, cuja ilicitude é de todos conhecida, segundo as regras da experiência e de convivência social, não sendo racional admitir a possibilidade de desconhecimento por parte da Arguida de que as expressões por si proferidas constituíam um comportamento censurável e proibido por lei.
15ª-Face ao exposto, conclui-se que a acusação particular, acompanhada pelo Ministério Publico nos termos em que o foi, deveria ter sido recebida, pois ela não é manifestamente infundada por omissão de elementos constitutivos do tipo, máxime a consciência da ilicitude criminal do facto.
16ª- A decisão de que se recorre violou o disposto nos arts. 311.º e 312.º do CPP, bem como o disposto no art.º 181.º n.º 1 do Código Penal, pelo que, com o devido respeito – que é muito – andou mal, o Tribunal “a quo”, ao proferir o despacho “sub judice”, que rejeitou a acusação particular deduzida pela Assistente, devendo, pois, ser, o mesmo, substituído por outro, que receba a acusação particular deduzida, tudo com as legais consequências.
Pugna pela procedência do recurso e pela revogação do despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação deduzida pela assistente, com todas as legais consequências.
***

1.2.Notificado da interposição do recurso, o Ministério Público apresentou a respetiva resposta, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
Nos termos do disposto no artigo 282º, nº 3, do Código de Processo Penal, aplicável à acusação particular por força do n.º 3 do artigo 285.º, “A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o
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