Acórdão nº 1435/22.3T9LRS.L1-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 21-03-2024

Data de Julgamento21 Março 2024
Ano2024
Número Acordão1435/22.3T9LRS.L1-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito do Processo Comum Singular nº 1435/22.3T9LRS, que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 13, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em que é arguido AA, com os demais sinais nos autos, foi proferida sentença, na qual se decidiu nos termos seguintes (transcrição):
“(…)
IV. Dispositivo
Termos em que se julga totalmente improcedente, por não provada, a acusação pública e em conformidade se decide absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b) do Código Penal.
Sem custas.
(…)”
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I.2 Recurso da decisão final
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões (transcrição):
“(…)
4. CONCLUSÕES.
I. Na douta sentença ora em recurso foi decidido, além do mais, absolver o arguido AA da prática, como autor material, de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, al. b) do Código Penal, porquanto entendeu não estar preenchido o elemento subjectivo de tal crime, por interferência do erro a que alude o art.º 16º, nº 1 do C.Penal.
II. O presente recurso funda-se na discordância com tal absolvição.
III. Considera-se que existe o erro previsto no art.º 410º, nº 2, al. a) do CPPenal, uma vez que a Mmª Juiz a quo apenas se pronunciou quanto ao dolo directo, não se tendo pronunciado quanto ás outras modalidades de dolo que este crime também admite.
IV. Também se considera existir erro notório na apreciação da prova (art.º 410º, nº2, al. c) do CPPenal), já que atendendo ao caso concreto, a partir da objectividade dos factos dados facilmente se infere o elemento subjectivo do tipo do ilícito.
V. Entrando na prova produzida, concretamente atentando nas declarações do arguido e nos depoimentos das duas testemunhas ouvidas, com todo o respeito que o Tribunal nos merece, não se pode escamotear o erro de julgamento (artigo 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal) quanto a todos os pontos da matéria de facto não provada.
VI. Com efeito, tendo presente as declarações do arguido (cujas passagens mais relevantes encontram-se acima transcritas), o mesmo disse saber que lhe iria ser instaurado um processo crime pelo crime de desobediência, sabendo o arguido igualmente o que tal significa.
VII. Os depoimentos dos inspectores da P.J. também não deixaram dúvidas quanto ás explicações que deram ao arguido a propósito da diligência que tinha que ser feita, à cominação com o crime de desobediência caso se recusasse (e mantivesse a recusa) e ás diversas tentativas que fizeram no sentido de levar o arguido a realizar a diligência, sempre sem sucesso, apesar de estar o arguido devidamente informado (e este as ter percebido) das consequências legais da sua recusa.
VIII. Cremos que existe igualmente erro quanto ao direito aplicado, uma vez que o Tribunal a quo entendeu operar o art.º 16º, nº1 do C.Penal, dizendo que o arguido desconhecia que, ao recusar-se a fazer a diligência ordenada, por aconselhamento da sua advogada, estava a cometer um crime de desobediência, com as respetivas consequências legais.
X. O art.º 16º “apenas se deve e pode referenciar aos crimes cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos, nem se tem de exigir que o seja,(...). Relativamente aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida e se tem de exigir que seja conhecida, de todos os cidadãos normalmente socializados, crimes naturais, crimes em si ou mala in se, seja os previstos, desde logo, no C.Penal, ou mesmo em legislação avulsa, mas sedimentados pelo decurso do tempo, é inaplicável aquele normativo” – neste sentido Ac. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.02.2015.
XI. Considerando o crime em causa – desobediência – está o mesmo perfeitamente sedimentado na consciência ético-social da comunidade, não sendo tão pouco uma questão que se revele discutível ou controvertida.
XII. Com efeito, o comum dos cidadãos em Portugal sabe que deve obediência ás ordens das autoridades judiciárias e policiais, nomeadamente quando lhes são devidamente comunicadas e explicadas, no âmbito de um processo penal, no qual além do mais, assume um papel de especial relevo – o de arguido – com direitos, mas também com deveres aos quais está adstrito, sendo o de sujeitar-se a diligências de prova especificadas na lei e ordenadas e efectuadas por entidade competente, um deles (art.º 61º, nº6, al. d) do CPPenal).
XIII. Entendemos por isso que ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 348º, nº1, al. b) e bem assim o art.º 16º, nº 1, ambos do C.Penal, devendo ao invés o arguido ser condenado pela prática de um crime de desobediência desobediência previsto e punido pelo artigo 348º, nº1, al. b) do Código Penal.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve a sentença ora recorrida ser substituída por outra que julgue a acusação provada por procedente e, por via dela, condene o AA como autor material e na forma consumada, pela prática, de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348º, nº1, al. b) do Código Penal fazendo-se, assim, a habitual, JUSTIÇA.
(…)”
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O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 05 de Dezembro de 2023, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, o arguido não respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público.
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I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição do Digno Magistrado do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
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I.5 Resposta
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao sobredito parecer, pelo arguido, que, em síntese, respondeu nos seguintes moldes (transcrição):
“(…)
I - O Parecer do MINISTERIO PÚBLICO incide sobre o recurso, presentado pelo mesmo, da sentença que absolveu o arguido da prática do crime de desobediência de que vinha acusado, previsto e punido pelo artigo 348º, nº1, al. b) do Código Penal.
II – O Ministério Público interpôs recurso por considerar que a sentença padece dos erros previstos no art.º 412º,nº 2, al.a) e c) do CPP, para além de erro de julgamento quanto a todos os pontos da matéria de facto não provada, que invoca ao abrigo do disposto no artigo412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
III - A motivação de recurso analisa a questão da produção de prova de forma incorreta. Analisados os fundamentos do recurso, com o devido respeito, afigura-se que a situação de erro de julgamento quanto a todos os pontos da matéria de facto não provada apenas se coloca na pessoa do recurrente. A matéria de facto não provada em julgamento está em plena sintonia com a prova produzida em julgamento interpretada à luz das regras de experiência comum. O princípio in dubio pro reo estabelece que, perante a persistência de uma dúvida razoável, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido.
Neste caso em concreto, o Tribunal a quo decidiu e bem a favor do arguido.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art.º 127 do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, ed. 1974, pag. 204.
IV – Pelo exposto, somos de parecer que o recurso não merece provimento. Caso assim não se entenda nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, segundo o nosso parecer, deve a sentença ora recorrida ser “substituída” por outra que julgue a acusação não provada mencionando a efeito o Dolo Eventual, por via dela, absolva o arguido AA.
Em suma, o Tribunal a quo fez uma correcta e perfeita análise da prova produzida pelo que a decisão do Tribunal a quo não merece qualquer censura antes, pelo contrário, integral confirmação.
Por todo o exposto, e uma vez que nada encontramos que mereça qualquer censura
ou reparo na sentença recorrida, esta parte emite parecer pela sua confirmação integral.
V. Exas. Senhores Desembargadores, porém, encontrarão a decisão que for justa.
(…)”
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I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal (doravante também CPP), bem como da jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ1), e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do CPP 3, relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).
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II.2- Apreciação do recurso
Assim, face às
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