Acórdão nº 1212/21.9PLLSB.L1-5 de Tribunal da Relação de Lisboa, 23-04-2024

Data de Julgamento23 Abril 2024
Número Acordão1212/21.9PLLSB.L1-5
Ano2024
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1– Relatório
No processo nº 1212/21.9PLLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 3, consta da parte decisória da sentença datada de 18/12/2023, o seguinte:
Pelo exposto, decide-se julgar a acusação improcedente por não provada e, em consequência, absolver o arguido AA da prática como autor material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, al. d) e nº 2, al. a), nº4 e nº5 do Código Penal, de que vinha acusado. (…)
*
Inconformado com a decisão absolutória, veio o Ministério Público interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos, o arguido AA foi submetido a julgamento e absolvido da acusação contra ele formulada pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, alínea d), n.º 2, alínea a) do Código Penal.
2. O Ministério Público vem recorrer da sentença por considerar que a mesma padece da nulidade prevista na alínea a), do nº 1, do artigo 379º, do Código de Processo Penal.
3. Com efeito, o Código de Processo Penal estabelece, no seu artigo 379º, um regime específico das nulidades da sentença e nos termos da alínea a), do n.º 1, é nula a sentença penal quando não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º.
4. Assim, após o relatório segue-se a fundamentação, dela devendo constar, a enumeração dos factos provados e não provados, e uma exposição dos motivos de facto e de direito que determinaram o sentido (“fundamentaram”) da decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do julgador.
5. Porém, tal não aconteceu na sentença recorrida, tendo a Mma. Juiz omitido o exigível exame crítico das provas, com violação do disposto no artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal.
6. Com efeito, analisada a sentença recorrida verificamos que a Mma. Juíza a quo limitou-se a efetuar uma descrição (parcial) do que disseram o arguido e as testemunhas em audiência julgamento, ficando, no entanto, por explicar o porquê da sua convicção e o que, em concreto, cada um dos meios de prova contribuiu para cada facto dado como provado e não provado.
7. A fundamentação – que apenas nominalmente assim se pode entender – utilizada na decisão recorrida, resume-se a designar os meios de prova de que o tribunal se serviu para formar a sua convicção, sem, no entanto, minimamente explicitar as razões da sua apreciação, não exteriorizando as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
8. É evidente a falta da exigida análise crítica das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, acerca do julgamento sobre o que disseram o arguido e as testemunhas, desde logo, para se poder aferir da sua credibilidade ou da falta dela.
9. A forma como a sentença está redigida (e não fundamentada) não permite alcançar o raciocínio expendido para a obtenção da decisão em causa, não havendo a necessária apreciação e valoração conjugada dos meios probatórios produzidos, obrigatoriamente aferidos por critérios de razoabilidade.
10. Não se afere da mesma o imperativo “exame crítico da prova”, a enunciação, especificada, dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, a referência à credibilidade que os mesmos mereceram ao tribunal, e o exame do seu valor e relevância probatórios; pelo que não se consegue apreender os motivos e a construção do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum.
11. A falta de fundamentação da sentença recorrida é assim gravemente insuficiente, não permitindo a perceção das razões de facto e de direito do sentido da decisão judicial.
12. Estamos, assim, pela importância da apontada insuficiência, perante uma omissão que acarreta a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, nº1, alínea a), do Código de Processo Penal.
13. Para o caso de não proceder a argumentação acima expendida, sempre se dirá que a Mmª Juiz incorreu em erro de julgamento ao incluir na matéria de facto não provada os factos 1 a 12 relativos à prática de maus tratos físicos e psíquicos à ofendida, às lesões sofridas e à intenção do arguido.
14. Na verdade, com relevância para a decisão a proferir sobre tais pontos da matéria de facto, impondo que sejam dados como provados, resulta a prova produzida em audiência de julgamento.
15. No dia 23/10/2023, na audiência de julgamento, a testemunha BB, vizinha da vítima e do arguido, que prestou depoimento num total de 7.56 minutos, do qual se destaca o seguinte:
“A CC faleceu agora este mês de …” (01.31)
“Ela vivia com o filho” (01.39)
“Ele aos vizinhos não incomodava ninguém, lá em casa, a gente ouvia ela gritar e pedir socorro” (01.48 – 01.54)
“Discutiam muito os dois e ela por vezes gritava, pedia por socorro” (02.33-02.39)
“Às vezes ouvia-o a chamar nomes. Chamava-lhe “puta e porca” (02.44-03.23)
“Eles viviam da reforma dela” (03.57-03.59)
“Ela dizia que lhe dava dinheiro” (04.42-04.44)
“Encontrei-a várias nas escadas. Ela dizia que tinha medo de ir para casa. Era o que ela dizia. E por vezes dormia na minha porque não queria bater à porta, porque o acordava” (05.01-05.44)
“As discussões eram de vez em quando, nem sempre havia discussões, mas quando havia eram acesas” (06.11-06.21)
“Ela, às vezes aparecia com nódoas os braços. Ela dizia que era um problema que ela tinha de saúde, se batesse com os braços, ficava com aquelas marcas (06.27-06.38).”
16. Na mesma sessão de audiência de julgamento, a testemunha DD, nora da vítima já falecida, prestou o depoimento com duração total de 16.24 minutos do qual se destaca:
“Muitos gritos. O meu cunhado queria dinheiro, a mãe muitas vezes não tinha.”
“Segundo o que ela disse na altura, ele mandou-lhe um encontrão contra a parede. Eu não sei, não estava lá, não vi. Onde ela teve de ser operada à cabeça, fez uma hemorragia interna”
“Eu estive cinco anos sem falar com ela, assim em contacto com ela. Ela também não o permitia. Entretanto, há 2 anos atrás faz agora em Dezembro dois anos, ela sentiu-se mal segundo o que eu sei lá no supermercado, chamaram a ambulância e ela foi para o hospital. E comunicaram-nos e aí nós fomos ter com ela, pronto, ver o estado dela, lastimável, muito magra”
“E então desde essa altura até agora eu estive sempre a acompanhá-la. Ela não relatava muita coisa. Ela encobria muita coisa.”
“A mim só me disse que ele lhe tinha batido uma vez, aquela vez da cabeça. Ela diz que ele a empurrou”.
“O filho chamava nomes à mãe: porca, vaca, muitas vezes.”
“A minha sogra beber? Não. Ela bebia um copo de vinho à refeição. A minha sogra não. O Sr. AA sim, bebia com regularidade. Ficava muito agressivo, mais com a mãe.”
“Ele pedia dinheiro à mãe. Muitas vezes a minha sogra pedia-me a mim e aos vizinhos para dar ao filho. Ela dava-lhe porque, não sei, não sei se tinha medo dele ou para ele não fazer barulho”.
“Cheguei a ver a minha sogra com marcas. Eu sei, uma vez fui buscá-la ao hospital por uma tareia que ele lhe deu, mas aí ele ainda estava na casa dele, aí ela vinha completamente toda preta, eu na altura ainda quis fazer queixa (…) isso antes de 2006.
Assim mais recente, as únicas coisas que eu via nela era, dava-me a sensação, que devia ser ele a agarrar nela e ela ficava com marcas. Parecia-me marcas dos dedos.”
“Ela era uma pessoa muito triste. Sei como a encontrei, muito magra, uma expressão muito triste, irreconhecível. “
“Ela não tinha forças para pegar num banco e atirar”.
“Na pandemia, ainda fui ao encontro dela, a meio de abril, telefonaram-me, neste caso a minha ex-cunhada, que me telefonou a dizer que ela andava a dormir nas paragens dos autocarros para nós irmos à procura dela. Não a encontrámos. Houve um polícia que a levou para casa.”
“Depois ainda tivemos um encontro com ela para ela ir fazer queixa dele. Na altura ainda sugeri que ela vendesse a casa e comprasse uma perto de mim que eu tomava conta dela, mas ela não quis. Ela defendia-o “com unhas e dentes”. Ela lá tinha as razões dela”.
17. Foi também ouvida na qualidade de testemunha, EE, agente da PSP, que prestou depoimento num total de 10.15 minutos, do qual se destaca o seguinte:
“Fui lá casa em várias datas em Outubro de 2021, e antes de Outubro fui com um colega. Nos contatos que tive com a D. CC, o comportamento dela foi sempre bastante apreensivo.”
“Eu já tinha feito um contato com a D. CC a propósito de uma participação de desavenças familiares, penso que foi de Abril ou Maio, mas só que na altura nós constatamos que havia algumas marcas físicas nos braços dela, só que as desculpas dela eram sempre que foi contra a escada ou que bateu num armário ou que fez alguma coisa assim do género que não tivesse sido uma agressão”
“Quando fomos realmente no dia 15 do 10 de 2021 lá de novo, aí é que nós fomos, nós também falamos com ela, ela disse que o arguido estava um bocadinho chateado face à situação de estar no desemprego, e que não tinha dinheiro, e que muitas das vezes pedia-lhe dinheiro a ela, e depois, ela nunca disse que tinha sido agredida, mas o que é facto é que, quando descemos do prédio, os vizinhos nos contactaram porque estavam deveras preocupados com a situação, nomeadamente com uma situação que tinha acontecido, penso que na noite de dia 13, que caiu um vidro e que pronto houve uma discussão mais acesa.
“A própria D. CC disse que o arguido, ao fechar uma porta, bateu com muita força e partiu o vidro.”
“Ela nunca dizia que tinha acontecido alguma coisa, mas falava com bastante pena da situação. Era um instinto muito protetor, sobretudo devido ao facto de ele não ter meio de subsistência.”
“Ela dormia nas escadas, chegava a dormir nas escadas, mas a nós nunca nos disse isso. Quem nos disse foi os vizinhos (06.50).
“A D. CC não me pareceu que tinha
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