Acórdão nº 101/20.9T9GVA.C2 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2023-10-25

Ano2023
Número Acordão101/20.9T9GVA.C2
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE GOUVEIA)

Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


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I. RELATÓRIO

… sido proferida sentença datada 31.01.2023, que decidiu:

“a) Absolver o arguido (…), da prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal.

b) Condenar o arguido (…), pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 70 (setenta) dias de multa à razão diária de 15,00EUR (quinze euros) perfazendo a quantia global de 1.050,00EUR (mil e cinquenta euros);

d) Declarar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização deduzido pela demandante … e, …, condenar o arguido demandado … no pagamento à demandante da quantia de 750,00EUR(setecentos e cinquenta euros), quantia, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da notificação do arguido da dedução de tais pedidos e às taxas legais desde então em vigor até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se do demais contra si peticionado.

(…)”

…, o arguido interpôs recurso da sentença, …

Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:

1. Deve julgar-se não provada a matéria de facto dos pontos 4 e 8 da decisão sobre a matéria de facto, face aos depoimentos das testemunhas …

5. A assistente declarou ter tido conhecimento das expressões pelas colegas …

6. O arguido negou os factos pelo que, tudo considerado, não deveriam ter sido considerados provados os factos impugnados.

7. Ficou essencialmente provado que, durante o espaço de três meses, algures dentro da instituição (qual instituição?), dirigindo-se a colegas de trabalho não identif‌icadas, o arguido referiu-se à assistente um número indeterminado de vezes como ratazana e ratazana de esgoto, sendo o arguido condenado com base nesta matéria de facto.

8. Tal matéria é tão escassa e pouco circunstanciada que impossibilitou, na prática, uma defesa cabal do arguido: não foram indicadas datas em concreto da prática dos factos, não foram indicados os destinatários dos dizeres difamatórios.

10. Estas insuf‌iciências tornam nula a acusação e, por arrasto, a sentença, ao ter sido violado irreparavelmente o direito de defesa do arguido.

11. A matéria de facto provada não é suf‌iciente para preencher os elementos do tipo do crime de difamação, …

O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

O Ministério Público apresentou resposta, …

A assistente apresentou igualmente resposta, …


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Neste Tribunal da Relação ..., o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer …


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II. QUESTÕES A DECIDIR

Atentas as conclusões apresentadas, … as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:

● Nulidade da acusação e da sentença condenatória

●Impugnação ampla da matéria de facto – erro de julgamento


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III. Transcrição dos segmentos da decisão recorrida relevantes para apreciação do recurso interposto

Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:

“ (…)

II. FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

2.1 - Factos provados

Produzida a prova e discutida a causa, o Tribunal, com relevância para a decisão, julga provados os seguintes factos:

1. A assistente … trabalha desde 02.12.1999 para a Associação ... – Instituição de Solidariedade Social, na qual o arguido …, desde 2002, detém o cargo de Presidente da Direcção.

2. Na sequência da audiência de discussão e julgamento no processo n.º 105/18.... realizada no dia 10.12.2019 e na qual a assistente prestou depoimento na qualidade de testemunha, o arguido deixou de falar com a assistente, sendo todas as comunicações realizadas entre si por intermédio da Directora Técnica ….

3. O arguido no âmbito do processo referido em 2) veio a ser condenado, por decisão proferida em 17.01.2020 pela prática de um crime de burla tributária, p. e p. pelos artigos 11º al. d), 87º, n.º 1 e 3 do RGIT na pena de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa por três anos, condicionada ao pagamento da prestação tributária no valor de 50.941,09 euros.

4. Na sequência do julgamento referido em 2), no período compreendido entre 10.12.2019 e Março de 2020, em datas e número não concretamente apurados, no interior da instituição (nomeadamente, na cozinha e nos corredores) o arguido referia-se à assistente, perante as suas colegas de trabalho, como ratazana e ratazana de esgoto.

5. No dia 14.02.2020 a assistente foi confrontada pelo arguido perante o Vice-Presidente, Secretário, Tesoureiro e Directora Técnica da Instituição com carta anónima dirigida à instituição que lhe imputava falta de profissionalismo e que a mesma seria conhecida por frequentar bares e bailes de copo na mão.

6. No dia 26.02.2020, quando o arguido se encontrava juntamente com outras funcionárias à mesa no refeitório da instituição e quando a assistente se aproximou para almoçar, o arguido de imediato se levantou e quando regressado à mesa quando a assistente terminou o seu almoço referindo-se à assistente disse, diante dos presentes “Fodas! Estava a ver que esta gaija não saía daqui”.

7. Na sequência do exposto, a assistente participou os factos à Autoridade para Condições do Trabalho, conforme comunicação junta a fls. 6 a 12, cujo teor se dá por reproduzido.

8. Ao actuar da forma descrita pretendeu o arguido violar a honra e consideração da assistente, nomeadamente, no seu local de trabalho.

9. Os comportamentos levados a cabo pelo arguido consubstanciaram uma actuação livre, voluntária e consciente, bem sabendo o arguido que a sua conduta é proibida e punida por lei e que o faz incorrer em responsabilidade criminal.


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2.2 - Factos não provados


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2.3 – Da convicção do Tribunal

Nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 97º e 374º, n.º 2 do C.P.P., na formação da sua convicção, o Tribunal atendeu, quer ao conjunto de prova produzida em sede de audiência de julgamento [em concreto, declarações do arguido …, declarações da assistente …, depoimentos das testemunhas…, quer na demais prova documental junta aos autos … e, ainda, à reprodução à visualização e reprodução mecânica em audiência de julgamento dos documentos de fls. 307 e 308 …


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(…)”

IV. MÉRITO DO RECURSO

1.

Nulidade da acusação e da sentença condenatória

Alega o recorrente que “Se tivessem sido identif‌icados na acusação os dias, os locais e as pessoas perante quem teriam sido proferidas as expressões, sendo descrito o modo como foram proferidas, poderia o arguido tentar descobrir o que sucedeu e onde estava nesses dias, sendo identif‌icadas as pessoas em concreto perante quem teria proferido as expressões poderia identif‌icá-las como testemunhas ou indicar outras, que também estivessem presentes.” – cf. nº 9 das conclusões de recurso.

Sustenta que “Estas insuf‌iciências tornam nula a acusação e, por arrasto, a sentença, ao ter sido violado irreparavelmente o direito de defesa do arguido.” – cf. nº 9 das Conclusões de recurso.

Resulta do artigo 283º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal, a obrigatoriedade de a acusação conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

E o artigo 374º, nº2, do Código de Processo Penal determina, como requisito da sentença, a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas.

A não observância destas disposições legais é ferida com o vício da nulidade (artigos 283º, nº 3, 311º, nº 3, alínea b) e 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal).

Do mesmo vício padece a decisão que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora das condições previstas nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal – alínea b), do nº 1 do artigo 379º do Código Processo Penal.

Esta exigência de conveniente descrição factual é corolário da estrutura acusatória do nosso processo penal, pela qual o objeto do processo é fixado pela acusação, que irá delimitar o poder de cognição do Tribunal.

Refere a este propósito Maia Costa[1] “A narração dos factos deve ser tanto quanto possível concreta, em termos de tempo e lugar e, havendo vários agentes, quanto à intervenção particular de cada um, sendo irrelevantes imputações genéricas ou coletivas, a não ser como enquadramento de factos devidamente individualizados.

A indicação rigorosa do tempo e do lugar da infração pode por vezes ser difícil ou mesmo impossível. Essencial é que a referência feita na acusação a esses elementos de facto seja suficientemente precisa que permita ao arguido defender-se adequadamente.”.

E a autossuficiência da acusação importa para salvaguarda do mesmo princípio, garante dos direitos de defesa do arguido, assim como a vinculação temática da acusação irá delimitar a abrangência da cognição do Tribunal.

Mas, tendo a acusação vertida nos autos servido o respetivo propósito, que seja a sujeição do arguido a julgamento, sem que antes tenha sido suscitado o apontado vício, apenas pode o mesmo ser conhecido na medida em que, por vertida a factualidade na decisão final, a venha a afectar, como o arguido alega.

Na verdade, o arguido não suscitou anteriormente a nulidade da acusação. E, tendo os autos sido remetidos à distribuição sem instrução, é no momento previsto no artigo 311º do Código de Processo Penal, no saneamento do processo, que cabe conhecer dos vícios da acusação, entre os quais, se incluí a inexistência de factos que...

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