Acórdão nº 10/20.1GEVFR.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2022-10-19

Ano2022
Número Acordão10/20.1GEVFR.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Processo nº 10/20.1GEVFR.P1
Data do acórdão: 19 de Outubro de 2022
Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa Desembargador 2º adjunto: Manuel Soares

Origem:
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira

Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente o arguido AA.
I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular foi proferida a sentença condenatória com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, julga-se a acusação pública procedente, por provada, e, em consequência, o tribunal decide:
- Condenar o arguido AA pela prática do crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo art. 387.º n.º3 e 4 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 8,00€ (oito euros), num total de 960,00€ (novecentos e sessenta euros);
- Condenar o arguido AA na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia, prevista no art. 388.º-A n.º 1 alínea a) do Código Penal, pelo período de 2 (dois) anos.”

2. Inconformado com a sua condenação, o arguido interpôs recurso da sentença, culminando a respetiva motivação com a formulação das necessárias conclusões, em que suscita as seguintes questões:
a) ao condenar o recorrente pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo disposto no artigo 387º, números 3 e 4, do Código Penal, o tribunal aplicou norma nula, por ser materialmente inconstitucional, uma vez que:
a. o tipo legal de crime não protege bem jurídico constitucionalmente reconhecido (artigo 18º, 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP); e
b. a conduta típica descrita no tipo legal de crime viola o princípio da tipicidade penal (artigo 29.º, 1 da CRP); e
subsidiariamente,
b) a pena aplicada é excessiva, violando o disposto nos artigos 47º e 71º do Código Penal, devendo o arguido ser antes condenado na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6,--€ (seis euros).

2. O recurso foi liminarmente admitido na primeira instância, com efeito suspensivo e subindo nos próprios autos.
3. Notificado do teor da motivação do recurso, o Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela sua improcedência nos seguintes termos conclusivos:
“O bem jurídico protegido no crime de maus tratos a animais de companhia é a vida e a integridade física do animal de companhia;
O fundamento constitucional encontra-se ínsito no art.º 66.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “ambiente e qualidade de vida” que, contempla a proteção dos animais, os quais são elementos ambientais concretos absolutamente imprescindíveis para o livre e saudável desenvolvimento da personalidade dos homens de hoje;
É elevado o grau de ilicitude dos factos, considerando o sofrimento infligido ao cão de forma reiterada e durante um lapso temporal longo (cerca de 6 anos), as diversas lesões que lhe provocou (nas patas, ouvidos e visão) e o grave desvalor do resultado (morte do canídeo); é intenso o dolo (direto) do arguido; as exigências de prevenção geral são elevadas devido à frequência com que este tipo de crime é praticado na sociedade o qual atenta contra a vida e a integridade física dos animais de companhia, enquanto seres vivos não humanos, com direito a uma existencialidade condigna; as necessidades de prevenção especial são reduzidas porque o arguido não tem antecedentes criminais e está social e profissionalmente inserido;
Contra o arguido temos a ausência de arrependimento e de formulação de um juízo crítico para a gravidade da conduta;
Assim sendo, e sobrepesando os fatores acima descritos, bem andou o Tribunal “a quo” em aplicar uma pena de 120 dias multa, a qual é adequada e proporcional, porquanto se situa a metade da moldura penal abstrata máxima legalmente aplicável;
O arguido reside em casa própria pagando uma prestação de crédito habitação no valor de 350,00€, exerce a profissão de serralheiro, aufere o salário de 850,00€, vive com a esposa que aufere um vencimento de 900,00€ e tem um filho maior de idade que não está a seu cargo;
O quantitativo diário da pena está longe de deixar de assegurar ao arguido um nível existencial mínimo adequado às suas condições socioeconómicas e, por outro lado, obriga-o a uma genuína reflexão, através de um real sacrifício, subjacente às finalidades de uma sanção penal;
A sentença não recorrida não violou os artigos 40º, 69º, n.º 1, al. a), 71º do C.P. e artigos 18 nº 2, 27º e 29º nº 1 da C.R.P..”

4. O Ministério Público[1] junto deste Tribunal emitiu parecer, pugnando também pela improcedência do recurso, essencialmente, com base na fundamentação da sentença e na resposta junta na primeira instância à motivação do recurso, como resulta do seguinte excerto do seu teor:
“(…) Aliás, as questões a dirimir no presente recurso foram, a nosso ver, adequadamente equacionadas e debatidas na resposta do Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância.
(…)
Para além disso, a decisão revidenda também é autossustentável, autoexplicativa e autossuficiente, o que já seria motivo suficiente e acrescido para que nos escusarmos de tecer mais aturadas considerações, por manifesta redundância.
Nessa conformidade, essencialmente pelo exposto, sem necessidade de mais aturadas considerações, tudo visto, analisado e ponderado, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, à reflexão doutrinária e jurisprudencial que as questões equacionadas tem merecido, à plêiade, força e validade dos argumentos aduzidos, à dogmática vigente, numa interpretação sistémica, integrada e entrelaçada das normas legais, compatibilizando o que é conciliável, não desvalorizando o que deve ser valorizável e face à altíssima complexidade de tudo o que é humano, bem como, num acto de decisão prudencial do risco inerente a qualquer decisão cujo objecto diga directamente respeito aos direitos, liberdades e garantias, afigura-se-me que se deverá julgar o presente recurso improcedente e manter-se a sentença recorrida nos seus precisos e exactos termos, com todas as legais consequências substantivas e adjectivas.”

5. Notificado do teor do parecer, o recorrente não apresentou qualquer resposta.
6. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].

Questões a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [2] e a jurisprudência [3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de segunda instância perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso -, que sintetizam as conclusões do recorrente, constituindo, assim, o seu thema decidendum:

Erros em matéria de direito:
A) Ao condenar o recorrente pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo disposto no artigo 387º, números 3 e 4, do Código Penal, o tribunal aplicou norma nula, por ser materialmente inconstitucional;
E, subsidiariamente,
B) A pena concreta aplicada é excessiva, violando o disposto nos artigos 47º e 71º do Código Penal, devendo o arguido ser antes condenado na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6,--€ (seis euros).
II – DA FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em conta as questões substanciais que constituem o objeto deste recurso, importa ter presentes, primeiramente, os factos pacificamente provados, bem como a fundamentação jurídica da sentença recorrida:

A) Factos provados:
“1. No período compreendido entre o ano de 2014 e o mês de Outubro de 2020, o arguido AA foi proprietário de um canídeo, macho, da raça Husky, que residia consigo na habitação situada na Travessa ..., ..., em ....
2. O arguido não cortou as unhas do seu canídeo fazendo com as mesmas se enrolassem e espetassem na zona palmar das patas provocando-lhe dores e dificultando o seu normal andar.
3. De igual forma, no período acima mencionado o cão padeceu de várias otites e desenvolveu cataratas nos olhos e o arguido não lhe prestou os cuidados médicos necessários, levando-o ao veterinário e dando-lhe medicação.
4. Como consequência directa da actuação do arguido, no dia 15 de Outubro de 2020, pelas 14h00m, no interior da sua habitação, o cão do arguido apresentava o seguinte estado de saúde: estava magro, com pêlo em mau estado, com as unhas enroladas e a espetar as almofadas plantares e desconforto de marcha, visão muito condicionada com a presença de cataratas, ouvido direito com tumor ulcerado com drenagem de conteúdo purulento que ocupava todo o pavilhão auricular, ouvido esquerdo muito sujo e com otite avançada, à palpação dos seus membros e coluna o cão manifestava dor articular severa, tinha um nódulo ulcerado no membro anterior esquerdo e tosse húmida permanente, apresentava uma infecção no pulmão e estava com anemia.
5. Em virtude do estado de saúde débil e de sofrimento em que se encontrava e sem qualquer hipótese de sobrevivência, o cão do arguido foi eutanasiado pelos serviços veterinários do Centro Veterinário ....
6. O arguido actuou da forma acima descrita sem que nada o justificasse.
7. O arguido agiu com o propósito
...

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