Acórdão nº 01465/19.2BELSB de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 03-11-2022

Data de Julgamento03 Novembro 2022
Ano2022
Número Acordão01465/19.2BELSB
ÓrgãoSupremo Tribunal Administrativo - (1 SECÇÃO)
ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:


1. A………., residente em ….. Goa, República da Índia, melhor identificado nos autos, intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa, intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra o Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. (IRN) e o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), onde formulou os seguintes pedidos:
“a) A declaração de “nulidade do ato de emissão de cartão de cidadão a favor do contrainteressado e, bem assim, de todos os atos dele dependentes»;
b) A condenação do IRN
i. «a cancelar o referido cartão de cidadão e eventuais documentos de viagem - nomeadamente passaporte - que tenham sido emitidos ao contra-interessado titular do referido cartão de cidadão»;
ii. «a aceitar o pedido de emissão de cartão de cidadão apresentado pelo A. em 22/8/2019, atribuindo-lhe um número de identificação distinto do anteriormente atribuído ao contra-interessado, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 16° n° 3 da LCC»; e
iii. a emitir «imediatamente o cartão do cidadão do A., remetendo-o com urgência ao Consulado Geral de Portugal em Goa».
c) A condenação do MNE «para que ordene ao Consulado Geral de Portugal em Goa que proceda à entrega com urgência do cartão de cidadão, após boa receção do mesmo por parte do 1º R”.

Por sentença do TAC foram consideradas improcedentes as exceções de inadequação do meio processual e de ilegitimidade passiva e julgada a intimação parcialmente procedente, tendo-se anulado a emissão do cartão de cidadão com a identificação civil n.º ……. e intimado o IRN ao respetivo cancelamento, bem como a diligenciar pela informação das entidades competentes para a emissão de documentos de viagem - nomeadamente passaporte – ou outros documentos que tenham sido emitidos ao contrainteressado titular do cartão de cidadão ora anulado, absolvendo-se os requeridos dos “demais pedido”.

O Requerente interpôs recurso desta sentença para o TCA-Sul que, por acórdão de 19 de Maio de 2022, concedeu-lhe provimento, decidindo revogar a sentença “quanto ao juízo de absolvição dos réus dos demais pedidos, julgando os mesmos procedentes e condenando-os a diligenciar pela imediata emissão do cartão de cidadão do recorrente por parte do IRN, IP, e a sua entrega por parte do Consulado Geral de Portugal em Goa”.

Deste acórdão, o IRN interpôs recurso de revista para este STA, tendo, na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:

Da Verificação dos Requisitos de Admissibilidade da Revista

A) O presente recurso versa sobre o douto acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 19/05/2022, que, conforme atrás já referido, apreciou do recurso interposto pelo Requerente A…….., aqui Recorrido, da douta sentença proferida em primeira instância, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, e que julgou improcedente o pedido de intimação administrativa para defesa de direitos, liberdades e garantias instaurada com vista à condenação do ora Recorrente, à emissão de pretendido cartão de cidadão, bem como à condenação do Ministério dos Negócios Estrangeiros – entidade co-Demandada – a proceder à sua imediata entrega, com carácter urgente, no Consulado Geral de Portugal em Goa.

B) Com relevância para a apreciação da verificação dos pressupostos de admissibilidade do presente recurso, haverá, smo a considerar que, subjacente à factualidade discutida e apreciada pelas instâncias existe a pretensão do Requerente, ora Recorrido, arrogando-se a identidade do cidadão português, A……., consubstanciada no assento de nascimento n.º 1274/2019, lavrado a 22 de fevereiro de 2019, no âmbito do processo de transcrição de nascimento n.º 32326/2019, a que lhe seja emitido e entregue o cartão de cidadão correspondente a tal identidade;

C) Tendo-se constatado ter existido outro indivíduo, arrogando-se a mesma identidade, a quem, com base no mesmo assento de nascimento português n.º 1274/2019, lavrado a 22 de fevereiro de 2019, foi emitido e entregue um cartão de cidadão português;

D) O que inviabilizou a emissão do cartão de cidadão requerido pelo aqui Recorrido, solicitado em 22/8/2019, detectando-se, por essa ocasião, a prática de ilícitos criminais, como sejam o de falsificação de documentos e usurpação da identidade de A…….., participados, entretanto, às autoridades judiciárias competentes;

E) Tal factualidade determinou a instauração de competente investigação criminal, dando origem aos – aqui conhecidos do Recorrente – processo de inquérito n.º ……, ao qual se encontra apenso, entre outros, o NUIPC ……., no âmbito dos quais, “…é investigada a prática dos crimes de falsificação ou contrafacção de documentos, auxílio à imigração ilegal, entre eventuais outros.”

F) Paralelamente, foram, também, nos serviços da Conservatória dos Registos Centrais, suscitadas dúvidas quanto à veracidade do assento de nascimento originário da República da Índia, respeitante a A…….., objecto de transcrição para o registo civil português mediante o assento de nascimento n.º 1274/2019, assim como, quanto à legalidade de emissão do passaporte n.º ……, por parte das autoridades da República da Índia em 13/12/2017, em nome de A…….., e documento este utilizado na instrução do pedido de transcrição do nascimento n.º 32326/2018;

G) Facto que deu origem à instauração, por parte da Conservatória dos Registos Centrais, do processo de averiguações n.º ….., e cuja pendência determinou o registo de cota no correspondente assento de nascimento, conforme preceituado nos termos do Cód. Registo Civil.

H) O mencionado processo de averiguações, ainda que relacionado com a factualidade mais abrangente no domínio das suspeitas da prática de ilícitos criminais graves, como sejam, entre outros, a falsificação de documentos e usurpação de identidade, é contudo um procedimento de natureza meramente administrativa e registal, não se confundindo, nem coincidindo com os processos de natureza criminal instaurados e ainda em curso, referentes à problemática da usurpação da identidade de A………...

I) Em face do que se conclui que a factualidade subjacente ao objecto do litígio se reconduz à problemática e fenómeno cada vez mais recorrente, cuja gravidade carece ser considerada e apreciada pelas instâncias jurisdicionais, de forma solene e reflectida.

J) Efetivamente, nos últimos anos, tem-se assistido a um aumento exponencial e muito preocupante, de pedidos de decretamento de intimações administrativas para defesa de direitos, liberdades e garantias, junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, com vista a condenação dos serviços de identificação civil, assim como, dos serviços do SEF, na emissão de cartões de cidadão e passaportes portugueses, por parte de indivíduos que se arrogam identidades de cidadãos portugueses, oriundos ou originários de outros territórios, constatando-se, em número significativo dos casos, tratarem-se de situações fraudulentas, inseridas em contextos de criminalidade muito grave, envolvendo a prática de crimes de usurpação de identidades, falsificação de documentos, auxílio a emigração ilegal e tráfico de pessoas;

K) O aqui Recorrente tem sido, nos últimos anos, demandado em centenas, ou quiçá já milhares, de processos desta natureza, aos quais, por se tratar de meio processual muito urgente, os vários interessados lançam mão como meio para forçar a Administração – que tem por missão prosseguir o interesse público, no respeito pelas posições jurídicas subjectivas dos cidadãos (vide o artigo 266.º n.º 1 da Lei Fundamental) – a agir com desprezo pelo interesse geral em benefício de cidadãos isolados, muitos dos quais, as autoridades judiciárias acabam por concluir não ser titulares das identidades que invocam…

L) O caso sub judice inscreve-se no contexto que atrás ficou descrito, o qual, o Recorrente entende, smo revestir uma relevância jurídica e social digna da tutela excepcional por parte deste Venerando Supremo Tribunal.

M) Pois que, o fenómeno de crescente criminalidade relacionada com a usurpação de identidades, envolvendo a emissão de documentos de identificação nacionais, impõe ao Estado Português constrangimentos sérios e preocupantes no plano da segurança interna, assim como, no plano da segurança internacional, e suscita graves preocupações no âmbito da estratégia de segurança e defesa dos Estados.

N) A República Portuguesa está inserida num conjunto de alianças e parcerias internacionais, como sejam a União Europeia, a NATO, o Espaço Schengen, entre outros, cujos compromissos assumidos determinam instâncias de relevância significativa tanto quanto ao tipo de ameaças e riscos que se colocam a Portugal, como às respostas em cooperação entre todas estas entidades e organizações, nas áreas da segurança e defesa.

O) O cartão de cidadão consubstancia um verdadeiro título de cidadania, e o direito à sua titularidade confere um amplo conjunto de direitos que excedem largamente as fronteiras ou os poderes de soberania do Estado competente para a sua concessão ou emissão.

P) A emissão do cartão de cidadão constitui competência cometida, por lei, ao IRN,IP aqui Recorrente, e quer por via do disposto pelo artigo 1.º da Lei n.º 33/99 de 18 de maio, que regula a identificação civil, quer nos termos estatuídos pela Lei n.º 7/2007, de 5 de Fevereiro, que rege a emissão e utilização do Cartão de Cidadão, designadamente o disposto nos termos dos artigos 27.º e 61.º, impõe medidas complementares de averiguação da identidade dos requerentes ou medidas restritivas de emissão do cartão de cidadão, sempre que suscitadas dúvidas a respeito da identidade ou nacionalidade dos respectivos requerentes - como sucede no caso sub judice.

Q) Atentas as razões expostas, e verificando-se no caso em apreço, a recusa legítima, fundamentada e justificada no enquadramento legal em...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT