Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 242/2018

Data de publicação07 Junho 2018
SeçãoSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 242/2018

Processo n.º 598/17

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de novembro ("LTC"), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, na redação dada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto (adiante referida como "Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais" ou "LADT"), «na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas».

Para o efeito, o requerente alega que o Acórdão n.º 591/2016 (acessível, assim como os demais adiante referidos, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) julgou inconstitucional a citada norma, juízo esse posteriormente reafirmado pelos Acórdãos n.os 86/2017 e 266/2017. Todas estas decisões transitaram em julgado.

2 - Notificado para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Presidente da Assembleia da República nada disse até ao termo do prazo legal de resposta.

3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.

II. Fundamentação

A) Verificação dos pressupostos e delimitação do objeto do processo

4 - De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos. Este preceito é reproduzido, no essencial, pelo artigo 82.º da LTC, o qual, em todo o caso, tem um conteúdo mais denso, dispondo que a iniciativa pertence a qualquer dos juízes do Tribunal Constitucional ou ao Ministério Público, devendo promover-se a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, previsto nesta mesma Lei.

Cumpre, em primeiro lugar, verificar o preenchimento dos pressupostos previstos nas normas citadas.

Não havendo dúvidas quanto à legitimidade ativa do representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional para formular o pedido sob apreciação, verifica-se também que a norma em apreço foi julgada inconstitucional, em sede de fiscalização concreta, em três casos, sobre que incidiram os citados Acórdãos. Acresce não existir divergência quanto ao fundamento invocado pelos arestos em causa, decidindo-se em todos julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 7.º, n.º 3, da LADT «na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas». A mesma norma foi igualmente julgada inconstitucional pelas Decisões Sumárias n.os 398/2017, 298/2017, 477/2017 e 479/2017, posteriormente confirmadas pelos Acórdãos n.os 645/2017, 695/2017, 698/2017 e 699/2017, ainda não transitados.

Encontram-se, deste modo, preenchidos os pressupostos de que a Constituição e a lei fazem depender a apreciação do pedido de generalização do juízo positivo de inconstitucionalidade formulado em sede de fiscalização concreta.

Note-se que o Ministério Público junto deste Tribunal interpôs recurso obrigatório para o Plenário ao abrigo do disposto no artigo 79.º-D da LTC do Acórdão n.º 645/2017 com fundamento na oposição desse aresto outros em que o Tribunal Constitucional se pronunciara pela não inconstitucionalidade da referida dimensão normativa (referindo, concretamente os Acórdão n.os 216/2010 e 671/2014). Na sua alegação de recurso, o Ministério Público concluiu nos termos seguintes:

«1.º - O artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, na redação conferida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, estabelece que as pessoas coletivas com fins lucrativos não têm direito a proteção jurídica.

2.º - Tal norma, enquanto de forma "liminar e absoluta - ou seja, sempre e em qualquer circunstância" exclui a possibilidade da concessão de apoio judiciário - em qualquer das modalidades - a pessoas coletivas com fins lucrativos, é inconstitucional por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.

3.º - Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.»

5 - Saliente-se, em todo o caso, que a norma objeto de tal juízo se aloja em preceito que, além das pessoas coletivas com fins lucrativos, também refere os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada. É o seguinte o teor do artigo 7.º, n.º 3, da LADT, ora em apreciação:

«As pessoas coletivas com fins lucrativos e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada não têm direito a proteção jurídica.»

Como referido, nos diversos julgamentos de inconstitucionalidade esteve apenas em causa a exclusão das pessoas coletivas com fins lucrativos do direito à proteção jurídica e o pedido reporta-se apenas à generalização do juízo positivo de inconstitucionalidade correspondente. Em consequência, o presente processo pode apenas incidir sobre a norma em causa na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela sua concreta situação económica, não podendo o Tribunal Constitucional apreciar, nesta sede, a estatuição idêntica referente aos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada contida naquele preceito.

B) As questões suscitadas pelo regime constitucional e infraconstitucional de proteção jurídica em matéria de acesso ao direito e aos tribunais

6 - O artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa garante a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesse legalmente protegidos», estabelecendo que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Esta garantia é imprescindível à proteção dos direitos fundamentais e, como tal, inerente à ideia de Estado de direito: sem prejuízo da sua natureza de direito prestacionalmente dependente e de direito legalmente conformado, a Constituição assegura a todos que não se pode ser privado de levar a respetiva causa à apreciação de um tribunal (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. I ao art. 20.º, p. 408). Além disso, o conteúdo deste direito não pode ser esvaziado ou praticamente inutilizado por insuficiência de meios económicos. Se os serviços de justiça não têm de ser necessariamente gratuitos, também não podem ser «tão onerosos que dificultem, de forma considerável, o acesso aos tribunais», pelo que «os encargos [com tal acesso terão] de levar em linha de conta a incapacidade judiciária dos economicamente carecidos e observar, em cada caso, os princípios básicos do Estado de direito, como o princípio da proporcionalidade e da adequação» (v. idem, ibidem, anot. VI ao art. 20.º, p. 411). Nesta perspetiva, a concessão de proteção jurídica garantidora do direito de acesso aos tribunais corresponde a uma dimensão prestacional de um direito, liberdade e garantia (v. idem, ibidem); não a uma simples refração do direito à segurança social (cf. idem, ibidem, p. 412).

7 - O sistema de acesso ao direito e aos tribunais consagrado na LADT destina-se, justamente, «a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o exercício ou a defesa dos seus direitos» (cf. o respetivo artigo 1.º, n.º 1). Em vista disso, o Estado desenvolve ações e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de proteção jurídica (v. ibidem, artigo 1.º, n.º 2). A informação jurídica traduz-se em «ações [- realizadas de modo permanente e planeado -] tendentes a tornar conhecido o direito e o ordenamento legal, através de publicação e de outras formas de comunicação, com vista a proporcionar um melhor exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres legalmente estabelecidos» (artigo 4.º, n.º 1). Já a proteção jurídica «é concedida para questões ou causas judiciais concretas ou suscetíveis de concretização em que o utente tenha um interesse próprio e que versem sobre direitos diretamente lesados ou ameaçados de lesão» (artigo 6.º, n.º 2) e reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário. A primeira consiste no esclarecimento técnico sobre o direito aplicável a questões ou casos concretos nos quais avultem interesses pessoais legítimos ou direitos próprios lesados ou ameaçados de lesão, compreendendo ainda as diligências extrajudiciais que decorram diretamente do conselho jurídico prestado ou que se mostrem essenciais para o esclarecimento da questão colocada (artigo 14.º, n.os 1 e 2). O segundo compreende diversos tipos de apoio (artigo 16.º, n.º 1):

a) Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo;

b) Nomeação e pagamento da compensação de patrono;

c) Pagamento da compensação de defensor oficioso;

d) Pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo;

e) Nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono;

f) Pagamento faseado da compensação de defensor oficioso;

g) Atribuição de agente de execução.

Saliente-se que, no tocante ao âmbito pessoal da proteção jurídica, a LADT estabeleceu, desde a sua redação originária, uma distinção entre pessoas singulares e pessoas coletivas: as primeiras têm direito a proteção jurídica, desde que demonstrem estar em situação de insuficiência económica...

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