Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 2/2023

Data de publicação09 Junho 2023
ELIhttps://data.dre.pt/eli/acsta/2/2023/06/09/p/dre/pt/html
Gazette Issue111
SeçãoSerie I
ÓrgãoSupremo Tribunal Administrativo
N.º 111 9 de junho de 2023 Pág. 28
Diário da República, 1.ª série
SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 2/2023
Sumário: Acórdão do STA de 9 de Março de 2023, no Proc.º n.º 2586/14.3BELSB 1.ª Sec-
ção Uniformiza a Jurisprudência nos seguintes termos: «A deliberação do Conselho
de Administração do Banco de Portugal de 03.08.2014 que, fazendo aplicação do DL
n.º 298/92, de 31.12 [vulgo RGICSF considerando o teor da Lei n.º 58/2011 e as
redações introduzidas àquele DL, nomeadamente, pelo DL n.º 31 -A/2012 e pelo DL
n.º 114 -A/2014], procedeu à aplicação ao BES de medida de resolução não infringiu
os comandos constitucionais constantes do art. 165.º, n.º 1, als. b) e l), na sua con-
jugação/articulação com o disciplinado nos arts. 17.º, 61.º, 62.º, 83.º, 161.º, als. c) e
d), e 198.º, n.º 1, todos da CRP, nem os insertos nos arts. 112.º, n.º 2, 165.º, n.º 2, da
CRP, assim como não ofendeu os princípios da igualdade [arts. 13.º da CRP e 05.º do
CPA/91] e da proporcionalidade [arts. 18.º e 266.º, n.º 2, da CRP, e 05.º do CPA/91],
nem o direito à propriedade privada [art. 62.º da CRP] e à livre iniciativa económica pri-
vada [art. 61.º da CRP], não tendo atentado, ainda, contra o direito da União Europeia
[mormente, os arts. 17.º, 41.º, n.º 2, al. a), e 52.º, da CDFUE, 36.º, 73.º, 74.º, 130.º e
131.º da Diretiva 2014/59/UE] e a CEDH [art. 1.º do Protocolo Adicional n.º 1 à CEDH],
pelo que soçobram, em consequência, as ilegalidades e as inconstitucionalidades que
à mesma deliberação foram acometidas.».
Acórdão do STA de 9 de Março de 2023, no Procº n.º 2586/14.3BELSB — 1.ª Secção
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal
Administrativo
RELATÓRIO
1 — A... S.a.r.l.; B..., L.P.; C..., Inc.; D..., L.P.; E... Limited; F..., L.P.; G..., L.P.; H..., LLC; I... L.P.;
J..., L.P.; K..., S.a.r.L.; L..., L.P.; M...; N...; O...; P... S.a.r.l.; Q... Limited; R...; S... (...), L.P. [doravante
AA.], vêm interpôr recurso jurisdicional para este STA, nos termos do disposto no art. 151.º, n.º 1,
CPTA, do acórdão proferido pelo TAC de Lisboa [TAC/LSB], em 12.03.2019, na ação administrativa
em que peticiona que “a Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, de 3 de
agosto de 2014, sobre a aplicação de uma medida de resolução Banco 1...” seja “a) Declarada nula
por violar sem habilitação legal válida o conteúdo essencial do direito de propriedade, nos termos
da alínea d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA” e “b) Subsidiariamente, anulada por violação dos
princípios da igualdade, proporcionalidade e boa fé, por força do artigo 135.º do CPA”, sendo que
[c]aso se entenda que a mesma Deliberação tem natureza regulamentar, deve a presente ação ser
igualmente julgada procedente, por provada, e consequentemente, ser declarada a ilegalidade dessa
Deliberação, desaplicando -a nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 73.º do CPTA”.
2 — Massa Insolvente da T..., S. A. [doravante A./Massa Insolvente T..., SA], Autora no processo
apenso [Proc. n.º 2808/14.0BELSB — no qual se peticiona a declaração de nulidade e/ou anulação
das deliberações do Conselho de Administração do Banco de Portugal (doravante BdP) de 22.07.2014
e de 03.08.2014, bem como de todos os atos consequentes daquelas deliberações] [havia interposto
recurso de apelação, nos termos dos arts. 140.º e 149.º do CPTA, para o TCA Sul (TCA/S) tendo
posteriormente vindo a aceitar a interposição de recurso de revista, ao abrigo do art. 151.º, n.º 1,
CPTA, para este STA] vem interpor recurso para este Tribunal do mesmo acórdão do TAC/LSB.
3Foram assim admitidos os 2 recursos por despacho de 17.07.2019 [cf. fls. 8171/8172
dos autos].
4As recorrentes apresentaram as suas alegações, cujas conclusões se dão aqui inteira-
mente reproduzidas.
4.1 — Extrai -se das conclusões das recorrentes referidas em 1:
«1Vem o presente recurso de revista do douto Acórdão que julgou a ação administrativa
especial identificada totalmente improcedente, com a consequente absolvição da entidade deman-
dada do pedido pela improcedência de todos os fundamentos que davam razão à mesma.
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2 — Relativamente à Inconstitucionalidade orgânica do Decreto -Lei n.º 114 -A/2014, de 1 de
agosto, por violação da reserva da competência legislativa da Assembleia da República ao abrigo do
artigo 165.º, n.º 1, alínea b), decidiu o Tribunal a quo que esta não se verifica uma vez que o Decreto-
-Lei n.º 114 -A/2014 não afeta o conteúdo essencial do direito de propriedade das autoras.
3 — Não podia estar o Tribunal a quo mais errado.
4 — O artigo 62.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, que prevê a proteção do
direito da propriedade privada, constitui um exemplo consolidado de direitos fundamentais de
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Ver, a este respeito, JOSÉ DE MELO ALE-
XANDRINO, Direitos Fundamentais -Introdução Geral, Principia, 2007, p. 46.
5 — Por essa razão, a análise levada a cabo pelo Tribunal a quo de distinguir o regime aplicável
aos direitos, liberdades e garantias do regime aplicável aos direitos análogos carece de sentido.
6 — Como explica VIEIRA DE ANDRADE “não nos parece que haja razões suficientes para
concluir que o artigo 17.º não se refere, em princípio, à globalidade do regime e, pelo contrário,
entendemos que a analogia substancial com os direitos, liberdades e garantias justifica que tam-
bém os direitos abrangidos gozem dos diversos aspectos desse regime, incluindo as garantias da
irrevisibilidade e da protecção resultante da reserva de lei formal. Não há obviamente qualquer
obstáculo à aplicação do regime, em toda a sua extensão, àqueles direitos que têm assento na
Constituição, dentro e mesmo fora do catálogo” JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª edição, Almedina, p. 187.
7 — O artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa dispõe que o regime dos direitos,
liberdades e garantias aplica -se não só aos direitos enunciados no título II da Constituição como
igualmente aos direitos fundamentais de natureza análoga.
8 — Quanto à definição daquilo que será o regime de direitos, liberdades e garantias, não
restarão grandes dúvidas, que este será o que resulta dos artigos 18.º; 19.º, n.º 1 e 3; 21.º, 22.º,
165.º, n.º 1, alínea b), 272.º, n.º 3 e 288.º, alínea d) da CRP.
9 — Do conjunto das disposições citadas é possível deduzir os traços estruturais do regime
dos direitos, liberdades e garantias sendo que, nesta sede, interessa saber que um desses traços
se consubstancia na necessidade de reserva relativa de competência da Assembleia da República
para a regulamentação da generalidade destes direitos (165.º, n.º 1, alínea b).
10 — No caso do direito de propriedade, consagrado no artigo 62.º da CRP, o Tribunal Consti-
tucional tem entendido que “Apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza
análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve
na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem
apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza
análoga aos direitos, liberdades e garantias [...].
11 — Estes direitos são dotados de um núcleo essencial intocável que, nessa dimensão, se
configura como uma verdadeira garantia, pelo que, ao menos no que a esse núcleo se refere, não
se vê motivo bastante para nos afastarmos da posição expressa da doutrina quanto à sua qualifi-
cação como «direitos análogos» aos «direitos, liberdades e garantias» (.).
12 — Ora, entende o Tribunal Constitucional que cabem necessariamente na reserva da
competência legislativa da Assembleia da República, por força das disposições combinadas dos
artigos 17.º e 168.º, n.º 1, alínea b), da CR, as intervenções legislativas que contendam com o núcleo
essencial dos “direitos análogos”, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que
justificam a atuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias. Vide,
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 373/91, disponível em http://www.tribunaIconstitucional.
pt/tc/acordaos/.
13 — Ora, no que concerne ao direito de propriedade, desse núcleo essencial, dessa dimensão
que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias faz, seguramente, parte o direito de
cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública — e, ainda
assim, tão só mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62.º, n.
os
1 e 2, da Constituição)
Vide, a este respeito, Acórdão n.º 377/99 do Tribunal Constitucional de 28 de fevereiro de 2000.
14 — Ainda assim, há que se entender que a natureza análoga diz respeito ao direito, em si
mesmo, e não ao núcleo essencial desse direito.
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15 — A determinação do núcleo essencial de um direito, liberdade e garantia serve como “vál-
vula de segurança” para a proteção desse direito em face de restrições legais ou de intervenções
restritivas, mas não serve para restringir a aplicação por analogia de um regime constitucional
específico apenas ao respetivo núcleo essencial. Cfr. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA,
Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, p. 375.
16 — Como diz José Carlos Vieira de Andrade, não há razões “para concluir que o artigo 17.º
não se refere, em princípio, à globalidade do regime, e, pelo contrário, (.) a analogia substancial
com os direitos, liberdades e garantias justifica que também os direitos abrangidos gozem dos
diversos aspectos desse regime, incluindo as garantias da irrevisibilidade e da protecção resultante
da reserva de lei formal”, acrescentando, porém, que “a reserva orgânica do Parlamento não é, em
si, uma exigência decorrente da determinabilidade dos direitos, mas sim da sua maior proximidade
valorativa ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana” (Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2001, págs, 194 e 195).
17 — O Tribunal Constitucional tem mantido uma orientação próxima desta última tese, “fazendo
assentar o radical da diferenciação do regime de competências na regulação dos aspetos que con-
tendem com o núcleo essencial dos «direitos análogos», por aí se verificarem as mesmas razões de
ordem material que justificam a atividade legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades
e garantias” (formulação do Acórdão n.º 373/91, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) ou,
de acordo com algumas concretizações, na regulamentação de aspectos materiais que traduzem
“uma garantia de defesa dos cidadãos perante o Estado que é a relação típica de incidência dos
clássicos direitos, liberdades e garantias” (cf. Acórdão n.º 78/86, publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 7.º vol., tomo II, pág. 702) ou que se prendem com a “realização do Homem como
pessoa” (cf. Acórdão n.º 517/99).” Vide, Acórdão do Tribunal Constitucional de 4 de fevereiro de
2010, n.º 6212010, Processo n.º 642/09, disponível emhttp://www.tribunalconstitucional.pt/tcacor-
daos/ 20100062.html.
18 — Certos então de que a aplicação do regime consagrado no artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da
Constituição da República Portuguesa encontra limitações no que diz respeito ao regime dos direitos
de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias como é o caso do direito de propriedade,
importa perceber que, in casu, os direitos dos Recorrentes se incluem no núcleo essencial do direito
de propriedade, tal como consagrado no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa.
19 — Neste contexto, é evidente que todas as alterações normativas ocorridas no RGICSF
(doravante Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras) em resultado do
Decreto -Lei n.º 114 -A/2014, de 1 de agosto são inconstitucionais na medida em que a sua base
legal não goza da necessária autorização legislativa.
20 — Isto porque, ao contrário do entendido pelo Tribunal a quo, as mesmas violam o núcleo
essencial do direito de propriedade dos Recorrentes enquanto direito de crédito.
21 — Ora, quer a doutrina, quer a jurisprudência constitucional, que consideram extensível o
regime orgânico dos direitos, liberdades e garantias aos direitos fundamentais análogos têm tido
o cuidado de salientar que essa extensão só se justifica quando estejam em causa “intervenções
legislativas que contendam com o núcleo essencial dos «direitos análogos», por aí se verificarem
as mesmas razões de ordem material que justificam a atividade legislativa parlamentar no tocante
aos direitos, liberdades e garantias” (formulação do citado Acórdão n.º 373/91)” Acórdão do Tribu-
nal Constitucional 374/03, Processo n.º 480/98, disponível em: http://www.tribunalconstitucional.
pt/tc/acordaos/20030374.html.
22 — Destarte, a bem do raciocínio jurídico, atente -se nas alterações levadas a cabo pelo
Decreto -Lei n.º 114 -A/2014, de 1 de agosto, nos artigos 145.º -B, 145.º -F, 145.º -H, 145,º -I, 153.º -M,
155.º e 211.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo
Decreto -Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.
23 — Antes do Decreto -Lei n.º 114 -A/2014, o mecanismo de resolução bancária já existia
na ordem jurídica Portuguesa e o artigo 145.º -B já previa que os credores e acionistas fossem os
principais intervenientes a arcar com os prejuízos da mesma.
24 — Todavia, o artigo 145.º -B, nesta nova redação, veio prever, com maior detalhe, em que
medida estas perdas se verificavam consagrando, inclusive, a correspondente indemnização a
ser paga aos credores no caso de se determinar um valor de recuperação em caso de liquidação.

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