Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2011, de 23 de Novembro de 2011

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2011 Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça: I 1 — João Filipe Peres Fidalgo, arguido no processo n.º 29/04.0JDLSB, do 2.º Juízo de Competência Crimi- nal do Tribunal Judicial de Oeiras, interpôs, ao abrigo do artigo 437.º do Código do Processo Penal, recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (9.ª secção) proferido, no âmbito daquele processo (na relação com o n.º 29/04.0JDLSB -M.L1), em 27 de Maio de 2010, por se encontrar em oposição com o acórdão, do Tribunal da Relação de Lisboa (5.ª secção), proferido, no mesmo processo (na relação com o n.º 29/04.0JDLSB -N.L1), em 4 de Maio de 2010. 2 — Realizada a conferência a que se refere o artigo 441.º do Código do Processo Penal, por acórdão de 5 de Maio de 2011, foi decidido verificarem -se todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, nomeadamente a oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, e ordenado o prosseguimento do recurso. 3 — Foram os sujeitos processuais notificados para alegar, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 442.º do Código do Processo Penal. 4 — Alegaram o recorrente e o Ministério Público. 4.1 — O recorrente João Filipe Peres Fidalgo concluiu, como segue, as suas alegações: «1.º Neste recurso de uniformização de jurisprudência o que está em causa é a interpretação a dar à expressão ‘decisão final’ constante no n.º 1 do artigo 80.º do CP. 2.º Isto porque existe jurisprudência, nomeadamente do Tribunal da Relação de Lisboa, que considera que a expressão ‘decisão final’ significa a decisão final tran- sitada em julgado. 3.º Como também existe jurisprudência, cada vez de forma mais maioritária, que a expressão ‘decisão final’ não implica o trânsito em julgado dessa decisão, mas tão somente a decisão proferida em 1.ª instância. 4.º Na realidade, a anterior redacção do artigo 80.º criava situações inaceitáveis, na medida em que existiam arguidos que acabavam por cumprir mais tempo de prisão do que aquela a que haviam sido efectivamente condenados. 5.º E foi exactamente a verificação de tais situações que levou à alteração legal operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro. 6.º Assim, ao interpretar a expressão ‘decisão final’ constante no n.º 1 do artigo 80.º do CP, como sendo a decisão transitada em julgado, não se mostra afastada a verificação de situações inaceitáveis de cumprimento excessivo de pena por parte de determinados argui- dos. 7.º Na verdade, o processo no âmbito do qual foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva ao arguido viu agora o acórdão proferido em 1.ª instância ser anulado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Não se vislumbrando de momento quando é que poderá existir o efectivo trânsito em julgado, ou mesmo se o recorrente vai ser condenado nesse processo, onde esteve detido preventivamente cerca de 14 meses. 8.º O que de facto o preceito normativo diz é que: ‘a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de per- manência na habitação sofridas pelo arguido são des- contadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto porque foi condenado tenha sido praticado anterior- mente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.’ 9.º Ora, se o legislador pretendesse referir -se ao trân- sito em julgado da decisão, teria sem sombra de dúvida incluindo essa expressão no preceito normativo. 10.º Mesmo, na proposta de lei, onde se explicitam os motivos da alteração legal, nada é referido quanto a isso, admitindo -se somente e de modo expresso que o desconto de tempo das medidas de coacção sofridas pelo arguido possam ter sido aplicadas em processo diferente. 11.º Atendendo a algumas objecções apresentadas por determinados autores, que salientavam a necessidade de estabelecer limites ao desconto de medidas de coacção privativas da liberdade, estabeleceu -se a restrição ope- rada na parte final do n.º 1 do artigo 80.º do CP. 12.º Esta restrição clarifica que esse desconto só poderá ser efectuado ‘quando o facto por que for con- denado tenha sido praticado anteriormente à decisão final no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.’ 13.º O que resolveu a possibilidade de um arguido preso preventivamente 18 meses por um crime pelo qual tivesse sido condenado a 1 ano pudesse eventualmente cometer outro crime, porque sabia que os restantes seis meses seriam descontados. 14.º Em suma, não se vê qualquer razão para fazer depender do trânsito o limite temporal estabelecido por lei com o fim de não levar o agente a cometer novos crimes por pensar que a prisão preventiva poderá ser descontada na nova pena, pois a partir do momento em que o agente é condenado, já não se pode proceder ao desconto da prisão preventiva. 15.º Esperar pelo trânsito seria dizer que, até ao trânsito, esta intenção da lei não valeria.

O que não tem sentido.

Resolvida essa questão, não se vislumbra qualquer entrave para aplicar o preceito normativo, tal como ele se encontra redigido. 16.º De facto, ao fazer depender o desconto do tempo de prisão preventiva sofrida pelo arguido do trânsito em julgado, poderá verificar -se situações que esse trânsito poderá somente ocorrer depois de cumprido todo o tempo de prisão efectiva no processo a que o arguido foi condenado e se eventualmente vier em recurso a ser absolvido no processo no qual sofreu a prisão preventiva esse desconto já não poderá ser efectuado. 17.º Desta forma, o melhor entendimento da lei é aceitar que quando ela escreveu decisão final, era mesmo decisão final que queria escrever, e não trânsito em julgado, pois que a interpretação contrária não tem sentido na lógica daquilo que a lei quis evitar.» 4.2 — O Ministério Público terminou as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões: «1 — No nosso sistema penal, o instituto do des- conto surge relativamente a medidas processuais, que se traduzam em restrições ou limitações de liberdade, e ainda quanto a penas anteriores e a medidas processuais ou penas sofridas no estrangeiro. 2 — São razões que se radicam em imperativos de justiça material que justificam que as restrições de liber- dade, impostas apenas por exigências processuais — que não devem ser consideradas como antecipação do cum- primento de uma pena e que podem consubstanciar- -se numa detenção, numa imposição de obrigação de permanência na habitação, numa prisão preventiva —, sejam descontadas no cumprimento da pena que, a final, venha a ser aplicada. 3 — Uma resposta, radicada num ideal de justiça material, revela -se premente quando àquelas restrições de liberdade — que podem ser impostas mesmo antes do trânsito em julgado de uma decisão condenatória — sub- jazam os factos, ou parte dos factos, que integram, inte- graram ou poderiam/deveriam ter integrado o processo, pelos quais o arguido vem a ser condenado. 4 — Ideal de justiça material a prosseguir igualmente quando as aludidas restrições de liberdade tenham sido impostas durante a tramitação de um processo que venha a terminar por um despacho, prolatado pelo Ministério Público ou pelo juiz de instrução, ou por uma decisão absolutória, que conheça, ou não, do mérito da causa. 5 — As exigências de justiça material, que justificam o respectivo desconto, sobrepõem -se às decorrentes das finalidades de aplicação de uma pena, sejam elas de prevenção geral ou de prevenção especial. 6 — Prevista no artigo 202.º do Código do Processo Penal, porque aplicada a presumido inocente — e pelas, sobejamente conhecidas, implicações negativas, a nível pessoal, familiar, laboral, social, que a imposição de uma prisão preventiva tem na vida de um qualquer cidadão, que nunca se apagam ainda que venha a ser absolvido ― a prisão preventiva é informada dos prin- cípios da excepcionalidade, subsidiariedade, proporcio- nalidade e precariedade. 7 — Por isso também o Código do Processo Penal, logo na sua versão original, previu, no artigo 214.º, n.º 2, a sua imediata extinção, sempre que a duração da pena de prisão imposta fosse superior à duração da prisão preventiva já sofrida, e ainda que da decisão condenatória tivesse sido interposto recurso. 8 — Já anteriormente à vigência do Código Penal de 1982 se optara pela não exigência de identidade entre o crime determinante da condenação e o crime que justificara a imposição de prisão preventiva. 9 — A evolução do instituto do desconto no nosso sistema penal foi no sentido de, por um lado, considerar abrangido pelo desconto o tempo de duração de outras medidas privativas/restritivas de liberdade, que não apenas a prisão preventiva, e, por outro lado, permitir que tal ocorra mesmo que as referidas medidas tenham sido impostas no âmbito de outros processos, assim se densificando a garantia de desconto do período de privação/limitação de liberdade imposto a presumido inocente. 10 — A norma constante do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ao prever o desconto da duração da prisão preventiva ( 1 ) no cumprimento da pena de prisão, veio apenas prescindir da exigência de a prisão preventiva ter sido imposta no mesmo processo em que o arguido foi condenado. 11 — Com a aludida alteração, logo ficaram abran- gidas pelo desconto as situações integradoras de crimes concorrentes, que implicariam, caso ocorresse condena- ção, a imposição de uma pena única, assim se acaute- lando que, em caso de absolvição no processo em que fora imposta prisão preventiva, o condenado não venha a ser prejudicado em virtude de os crimes terem sido conhecidos em processos distintos, como especifica- mente recomendado pelo Provedor de Justiça. 12 — As razões de justiça material que fundamentam o instituto do desconto e justificam as regras da sua aplicação estão na verdade presentes naqueles casos em que, estando em causa situações...

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