Acórdão nº 1416/22.7T8SRE.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 21 de Novembro de 2023

Magistrado ResponsávelANTÓNIO FERNANDO SILVA
Data da Resolução21 de Novembro de 2023
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Relator: António Fernando Silva Adjuntos: Sílvia Pires Cristina Neves Proc. 1416/22.7T8SRE Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I. AA intentou a presente ação contra BB e sua mulher CC pedindo que: - seja reconhecida a servidão legal de passagem, pré constituída, nos termos do disposto no artigo 1549.º do Código Civil, entre o prédio da Autora (artigo 870) e o prédio dos Réus (artigo 655), de aproximadamente 15m de comprimento por 2 m de largura, partindo da Rua ..., no lado nascente dos prédios, aí se desenvolvendo para poente ao longo das suas estremas até ao poço sito no prédio da autora, por forma a permitir a circulação de forma cómoda e segura, a pé, de uma carrinha (para transporte de cargas e trabalhadores agrícolas) e/ou máquinas agrícolas, veículos automóveis e ambulância, em fiel reprodução da serventia que foi constituída na origem dos supra aludidos prédios, - sejam os Réus condenados a demolir/retirar a vedação que, colocaram, a meio e ao longo de toda a serventia supra descrita, porquanto, a mesma impede o uso normal e reiterado que sempre foi feito de tal serventia ao longo de mais de 30 anos, - sejam os Réus condenados a reconhecer tal direito de servidão legal de passagem, - sejam os Réus condenados a manter o trajeto desta servidão livre e desimpedido de qualquer obstáculo, - sejam os Réus condenados a pagar uma indemnização por danos morais, no valor de 1.000 euros, e - sejam os Réus condenados a pagar à Autora por cada dia de atraso no cumprimento da decisão judicial que se vier a ser proferida uma sanção compulsória, à razão diária, de 25 euros.

Alegou para tanto, no essencial, que: - é proprietária de prédio urbano que adquiriu por partilha da herança da sua mãe.

- os RR. são proprietários de prédio que confina a norte com o seu prédio.

- entre esses prédios existe uma serventia de acesso a ambos os prédios que a A. e antepossuidores têm vindo a usar há mais de 30 anos, de forma livre, ininterrupta, sem quaisquer restrições, à vista de toda a gente, sem oposição, na convicção de poder fazê-lo e de boa fé.

- ambos os prédios são provenientes de prédio ...58, propriedade da mãe da A., a qual neste edificou duas casas, constituindo os prédios artigo 870 e artigo 655.

- tendo ficado constituída nesse momento uma serventia de acesso a estes dois prédios e a um terceiro prédio ...58 (hoje artigo ...70 rústico).

- essa serventia está delimitada por um caminho entre a Rua ... e o poço existente no prédio da Autora (artigo 870), sendo tal faixa de terreno inclusive propriedade da Autora.

- tal caminho sempre deu acesso da via pública aos três prédios (958, 870 e 655), permitindo a entrada de tractores, carros, ambulâncias e máquinas agrícolas.

- posse que se manteve exercida pela Autora desde a data de aquisição do referido imóvel, continuando a posse iniciada pelos seus antecessores (a mãe da Autora).

- em 2022 os Réus edificaram uma vedação que impede a entrada de tractores, carros, ambulâncias e máquinas agrícolas.

- a serventia foi constituída, pela mãe da Autora quando no prédio único (958), edificou duas casas (artigos 870 655), constituindo tal serventia para acesso a ambos os prédios, sendo impossível o acesso ao prédio da A. (habitação e logradouro) sem aquela serventia.

- a situação criou à Autora tristeza e angústia.

Os RR. contestaram, alegando no essencial que: - os RR. são proprietários do prédio urbano com o art. ...55 e ainda do prédio rústico com o art. ...58, comprados em 17.02.2014 e sempre pretenderam vedar os seus prédios, ao que a A. se opunha.

- no âmbito de um processo crime chegaram a acordo, tendo, nomeadamente, acordado que a «Assistente aceita que as Arguidas coloquem uma rede nos termos em que vem descrito no licenciamento para o efeito, da Câmara Municipal ...», o que fizeram – tal acordo constituiria excepção que deveria conduzir à sua absolvição dos pedidos.

Impugnaram depois a versão da A., mormente afirmando a existência apenas de dois prédios confinantes que não estavam murados nos seus limites.

Invocaram ainda a litigância de má fé da A..

A A. respondeu, pugnando pela improcedência da excepção e do pedido de litigância de má fé, requerendo por sua vez a condenação dos RR. como litigantes de má fé.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador no qual, considerando a excepção invocada quer enquanto excepção dilatória quer enquanto excepção peremptória, se julgou improcedente a exceção dilatória de caso julgado e a exceção inominada de autoridade de caso julgado, e se relegou para a sentença o conhecimento da exceção peremptória.

A final, foi proferida sentença na qual, em especial, se considerou não estarem verificados os pressupostos da aquisição da servidão por destinação de pai de família mas estarem verificados os pressupostos da aquisição da servidão de passagem por usucapião, tendo daí retirado as demais consequências (avaliando ainda a defesa dos RR quanto ao acordo, que considerou não proceder).

Assim, decidiu-se nos seguintes termos: 7.1. Reconhece-se a servidão de passagem, constituída por usucapião, em benefício do prédio registado a favor da Autora, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., da Freguesia ..., sob o n.º ...35, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...70, onerando o prédio registado a favor do Réu, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., da Freguesia ..., sob o n.º ...02, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...55, com uma área (inserta no prédio registado a favor do Réu) correspondente a 52,64 metros quadrados, partindo da Rua ..., no lado nascente dos prédios, aí se desenvolvendo para poente ao longo das suas estremas até ao poço sito no prédio da Autora, por forma a permitir a circulação de forma cómoda e segura, a pé, de bicicleta, motociclo, ou com máquinas agrícolas de pequenas dimensões, em fiel reprodução da serventia que foi constituída na origem dos supra aludidos prédios, que deverá ter, essencialmente, a seguinte configuração (traçado a vermelho): 7.2. Condenam-se os Réus a demolir/retirar a vedação construída no decurso da servidão descrita no ponto 7.1.; 7.3. Condenam-se os Réus a manter o trajeto da servidão descrita no ponto 7.1. livre e desimpedido de qualquer obstáculo; 7.4. Condenam-se os Réus a pagar por cada dia em que, por algum meio, estorvem, perturbem ou impeçam o trajeto da servidão de passagem descrita em 7.1., uma sanção pecuniária compulsória à razão diária de 25,00€ (vinte e cinco euros), sendo 50% para a Autora e 50% para o Estado; 7.5. Julga-se improcedente, por não provado, o pedido de litigância de má fé deduzido contra os Réus, absolvendo-se os mesmos de tal pedido; 7.6. Julga-se improcedente, por não provado, o pedido de litigância de má fé deduzido contra a Autora, absolvendo-se a mesma de tal pedido; 7.7. No restante, julga-se a presente ação improcedente, por não provada, absolvendo-se os Réus do demais peticionado.

Desta decisão interpuseram os RR. recurso no qual formularam as seguintes conclusões: 1 – O presente tem por objecto a douta sentença que, com recurso à via da usucapião, julgou a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, reconheceu a servidão de passagem, constituída por usucapião, em benefício do prédio registado a favor da Recorrida, condenando os Recorrentes nos termos que nela vêm descritos, sendo que a sentença recorrida errou na aplicação das normas subjacentes a tal decisão e, também, na apreciação dos pressupostos de facto, em ordem a realizar o direito.

2 – A discordância dos Recorrentes prende-se com o facto de na sentença recorrida (em «5.3. Da servidão de passagem constituída por usucapião») ter sido considerado que «(…) apurar se a servidão cujo reconhecimento a Autora peticiona foi, ou não, constituída, por via da usucapião, não configura uma violação do princípio do pedido, estabelecido legalmente no artigo 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, na medida em que tal norma deve ser interpretada conjuntamente com a prevista no artigo 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, que dispõe que o tribunal não se encontra sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, comportando, assim, o princípio do jura novit curia.».

3 – Resulta do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que a actividade judicativa, com excepção das questões que o julgador deva conhecer oficiosamente, mostra-se confinada ao objecto do litígio, sendo o objecto do processo integrado pela causa de pedir e pela pretensão formulada pelo autor.

4 – Na verdade, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: «O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.».

5 – Em homenagem ao princípio do pedido, não pode a condenação ter objecto diverso do que haja sido pedido e o pedido deve entender-se como a função processual requerida para uma individualizada (pela causa de pedir) pretensão processual.

6 – Não deixa de ser verdade que, ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino iura novit curia – actualmente consagrado no artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o tribunal pode apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram concitadas pelas partes.

7 – Sobre as limitações impostas pelo pedido à liberdade de qualificação jurídica, a propósito do efeito de caso julgado, diz-se em acórdão do STJ, de 18/09/2018, prolatado no processo 21852/15.4T8PRT.S1: «(…) ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o...

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