Acórdão nº 546/22.0T8VLG.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 16 de Novembro de 2023

Magistrado ResponsávelMARIA CLARA SOTTOMAYOR
Data da Resolução16 de Novembro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. AA e BB propuseram ação declarativa comum contra o Estado Português no Juízo Local Cível de ..., da comarca do Porto, pedindo que se reconheça que vivem desde 1997 em condições análogas às dos cônjuges com vida e economia em comum, reconhecendo-se por isso a sua união de facto desde aquela data.

Alegam para tal um conjunto de factualidade tendente a demonstrar tal situação, uma vez que o seu reconhecimento judicial é requisito legal para a autora BB poder obter a nacionalidade portuguesa [já que, conforme se dispõe no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (Lei 37/81 de 3 de outubro, na sua redação mais recente, que é a introduzida pela Lei Orgânica nº2/2020 de 10/11) “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível”].

  1. O Ministério Público, em representação do Estado, deduziu contestação, impugnando por desconhecimento os factos alegados pelos autores no sentido da sua pretensão e defendendo a final que a ação venha a ser julgada conforme for de direito e de acordo com a prova que vier a ser produzida.

  2. Após os articulados, a Juíza do Tribunal de 1.ª instância proferiu despacho a ordenar a notificação das partes para se pronunciarem acerca da incompetência material daquele Juízo Cível para preparar e julgar a ação, por, no entendimento que ali esboçou, tal competência caber ao Juízo de Família e Menores, nos termos da alínea g) do nº1 do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

    Cada uma das partes defendeu que aquele Juízo é o materialmente competente para a ação.

  3. Seguidamente, pela Juíza do tribunal de 1.ª instância foi proferido despacho no qual considerou ocorrer incompetência absoluta do tribunal onde a ação foi proposta, por via de infração das regras de competência em razão da matéria e, nessa conformidade, absolveu o Réu da instância.

  4. É o seguinte o teor de tal decisão (transcrita no Relatório do acórdão recorrido): «Os presentes autos de ação de processo comum visam o reconhecimento da situação de união de facto dos Autores desde há mais de três anos – desde 1997 –, com todas as consequências legais.

    A ação foi instaurada ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro), que dispõe da seguinte forma: O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.

    Foi cumprido o contraditório relativamente à competência material deste Juízo Local Cível para o julgamento da presente ação e ambas as partes se pronunciaram no sentido da sua competência.

    Cumpre apreciar e decidir.

    A competência do tribunal, fixada com referência à data da propositura da ação, é aferida em função dos termos em que a ação é proposta, seja quanto aos seus elementos objetivos (pedido e causa de pedir), seja quanto aos seus elementos subjetivos (partes) – cfr. acórdão do STJ de 22.10.2015, proc. 678/11.0TBABT.E1.S1, disponível no sítio da internet da dgsi.

    Os artigos 64.º do Código de Processo Civil, 80.º, n.º 1, 81.º e 130.º, n.º 1, alínea a) da LOSJ (Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) enunciam o critério geral de orientação para a solução do problema da determinação do tribunal competente em razão da matéria, segundo o qual aos tribunais de comarca – desdobrados em juízos centrais e locais – compete julgar os processos não abrangidos pela competência de outros tribunais, competindo aos juízos de competência genérica da instância local preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro juízo da instância central ou tribunal de competência territorial alargada.

    Por seu turno, estipula o artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da mesma Lei, que compete aos juízos de família e menores preparar e julgar, para além das ações descritas nas restantes alíneas, outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

    Somos de entendimento que esta alínea pretende abranger toda e qualquer ação que se relacione com as situações casamento, união de facto ou economia comum.

    A união de facto consubstancia uma das formas juridicamente admissíveis de constituição de família (cfr. Lei n.º 7/2001, de 11 de maio).

    Ora, visando o pedido formulado nos autos o reconhecimento de uma situação juridicamente relevante em termos de constituição de vínculo familiar, são os Juízos de Família e Menores os competentes para dele conhecer, nos termos da citada alínea g), do n.º 1 do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.

    Embora tendo presente a divergência jurisprudencial nesta matéria, não concordamos com a leitura feita nos acórdãos citados pela Digna Magistrada do Ministério Público, por entendermos que se focam numa interpretação literal do preceito (cuja redação terá procurado afastar a possibilidade de se entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos), desvalorizando as alterações legislativas posteriores ao nível da organização dos tribunais judiciais.

    Defendemos já esta posição em processo anterior, suscitando, na sequência, conflito negativo de competência, que veio a ser decidido no Tribunal da Relação do Porto no sentido da atribuição da competência a Juízo de Família e Menores.

    Veja-se, no mesmo sentido, os seguintes acórdãos: acórdão do TRC de 08.10.2019 proferido no processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1; acórdão do TRC de 23.06.2020, proferido no processo n.º 610/20.0T8CBR-B.C1; acórdão do TRL de 11.12.2018, proferido no processo n.º 590/18.1T8CSC.L1-6; acórdão do TRL de 30.06.2020, proferido no processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-7, todos disponíveis no sítio da internet da dgsi.

    Posto isto, a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (artigo 96.º do Código de Processo Civil).

    Esta incompetência constitui uma exceção dilatória insanável, de conhecimento oficioso e que pode ser suscitada em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa (artigos 96.º, 97.º, n.º1 e 98.º, todos do Código de Processo Civil).

    Tendo havido já citação, a verificação da incompetência absoluta importa a absolvição do Réu da instância, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 99.º, n.º 1 e 590.º, n.º 1, este a contrario sensu, ambos do Código de Processo Civil.

    Pelo exposto e ao abrigo dos citados normativos legais, declaro este Juízo Local Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto incompetente em razão da matéria para preparar e julgar a presente ação, cabendo tal competência ao Juízo de Família e Menores de ... desta Comarca do Porto e, em consequência, absolvo o Réu ESTADO PORTUGUÊS da instância».

  5. De tal decisão vieram os Autores e o Ministério Público interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente o recurso e confirmado a decisão do tribunal de 1.ª instância.

  6. Inconformado, veio o Ministério Público interpor recurso de revista excecional, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, al.

    c), do CPC, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões: «1) O Acórdão recorrido deste TRPorto, de 27/03/2023, está em contradição com outro desse Supremo Tribunal de Justiça – Acórdão fundamento, datado de 17/06/2021, transitado em julgado - no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamental de direito, com igual identidade, sem que tenha sido proferido Acórdão de uniformização de jurisprudência.

    2) O Acórdão recorrido merece ser expurgado da ordem jurídica, por ter feito inadequada interpretação e aplicação do disposto no Artº. 3º. Nº. 3 da Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei Nº. 37/8.

    3) Nele foi decidido que a expressão “tribunal cível”, a que nele se alude no contexto da actual orgânica judiciária tem de ser entendida como sendo o “Juízo de Família e Menores” por integrar um tribunal com competência especializada cível, conforme a estatuição da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da Lei nº. 62/2013, de 26/8 - Lei de Organização do Sistema Judiciário - com competência material para reconhecimento da situação de união de facto em ordem a ulterior aquisição de nacionalidade.

    4) No Acórdão fundamento, o Supremo Tribunal de Justiça, em oposição ao ali decidido, negou aos tribunais de família e menores a competência material para julgar tais acções.

    5) Na divergência dos arestos foram determinadas soluções jurídicas que contêm elementos que as identifiquem como «questões» passíveis de apreciação jurídica idêntica, por ter ocorrido interpretação diferenciada da norma a que se alude no nº. 3 do artº. 3º. da Lei 37/81.

    6) À Lei da Nacionalidade - Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro decorrente da alteração introduzida pela Lei Orgânica Nº. 2/2006 e suas sucessivas alterações, foi conferido o valor de Lei Orgânica, o que lhe concede uma relevância constitucionalmente reforçada.

    7) O seu artº. 3º. Nº. 3 foi introduzido pela Lei Orgânica n.º 2/2006, que pela 5ª. vez alterou a Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro e, desde a sua entrada em vigor, até ao presente, sem qualquer outra alteração, com manutenção do mesmo tipo de política legislativa.

    8) Apesar da natureza específica desta norma, a atribuição da competência material aí prevista, o segmento tribunal cível, tendo em consideração a actual Lei Nº. 62/2013, que aprovou a Lei Orgânica do Sistema Judiciário, não pode ser entendido como sendo o Juízo de Família e Menores.

    9) Deverá ser proferido acórdão que proclame, neste caso concreto, a essencialidade do douto aresto fundamento, em revogação da decisão aqui proferida e que se lhe opõe.

    10) Há necessidade de emissão de pronúncia esclarecedora por parte desse Supremo Tribunal de Justiça.

    11) Decidindo, como decidiu, este Tribunal “a...

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