Acórdão nº 1/20.2T8AVR.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Outubro de 2023

Magistrado ResponsávelMARIA DA GRAÇA TRIGO
Data da Resolução12 de Outubro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. Valart, Lda. e AA intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Auto Manaiacar, S.A.

, alegando - Que o A. AA, por intermédio de seu pai, adquiriu à A.

side loaders, que se destinavam a ser exportados para ...; - Que foi necessário adquirir veículos pesados para serem instalados os side loaders; - Que AA adquiriu um desses veículos à R.; - Que quando o veículo chegou ao porto de ..., onde teria lugar o embarque, se constatou que o veículo, atenta a sua idade, não poderia ser exportado; - Que a R. transportou o veículo para as instalações da A.; - Que volvidos alguns anos, em 2015, o veículo foi vendido à F...; Lda.; - Que, quando iniciou os procedimentos para legalização da viatura (que ainda tinha matrícula francesa), constatou que os documentos do veículo não estavam no seu interior; - Que se constatou que os documentos tinham sido enviados pelo despachante à R.; - Que esta, apesar de saber que o veículo tinha sido, entretanto, vendido, e apesar de várias vezes interpelada para o efeito, não entregou os documentos do veículo, só o tendo feito no âmbito de um processo crime contra si movido; - Que a F...; Lda. intentou acção contra a Valart, invocando incumprimento e resolução do negócio; - Que, no âmbito dessa ação, a Valart veio a ser condenada a devolver à F...; Lda. o preço de €20.000,00, a pagar a título de indemnização €5.000,00 e ainda no que se liquidasse; - Que foi a atuação da R., de não devolução dos documentos ao A. AA, que levou a que o negócio de nova venda do veículo ruísse.

Pedem que a R. seja condenada a pagar à A.: - Por via do direito de regresso, €25.000,00 liquidados na sentença do processo cível e ainda no que resultar da liquidação, crendo-se que venha a ser pelo menos €125.000,00, e, ainda, em todas as quantias que, eventualmente, se venham a liquidar em montante superior; - Em juros de mora desde, pelo menos, a data da interpelação para entrega dos documentos.

A R. contestou, arguindo a ineptidão da petição inicial, pelo menos no que se refere ao A. AA, por falta de pedido.

Alegou: - Que, pelo facto de a viatura se destinar à exportação, estava isenta de IVA; - Que os documentos se extraviaram, tendo pedido segunda via dos mesmos; - Que, como a exportação para ... não se veio a concretizar, o comprador teria de liquidar e de lhe entregar o IVA devido; - Que foi notificada para entrega dos documentos, no âmbito de processo crime, o que fez, requerendo que os documentos só fossem entregues ao A. e comprador AA, contra o pagamento do IVA referente à venda do veículo; - Que, logo que soube que o direito à liquidação do IVA devido pela R. se encontrava caducado, requereu a entrega dos documentos ao A. AA, sendo que a A. só pediu o seu levantamento cinco meses depois.

Concluiu pedindo que a petição fosse considerada inepta em relação ao A. AA por falta de pedido e que a acção seja julgada improcedente em relação à A. Valart.

A A. apresentou resposta, pugnando pela improcedência da excepção de ineptidão da petição inicial.

Foi apresentada petição inicial aperfeiçoada, sendo que, na contestação apresentada, a R. pediu a condenação da A. como litigante de má fé.

Foi realizada audiência prévia, com elaboração de despacho saneador que julgou procedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial no que se refere ao A. AA, absolvendo a R. da instância, nessa parte.

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente, condenando a R. a pagar à A.: - €5.000,00, acrescidos de juros legais contados desde a citação até efectivo e integral pagamento; - A quantia que a A. vier a pagar à F...; Lda., fruto da liquidação a efectuar da sentença proferida no âmbito do processo 1634/17.0..., nos termos descritos no ponto 34 dos factos provados.

Julgou-se não verificada a existência de litigância de má fé.

  1. Inconformada, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão da matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

    Por acórdão de 20-01-2023 foi rejeitado o conhecimento da impugnação da matéria de facto e, a final, proferida decisão de improcedência do recurso e de confirmação da decisão recorrida.

  2. Novamente inconformada, interpôs a R. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando conclusões que, pela sua excessiva extensão (112 conclusões) e pelo seu carácter repetitivo, aqui não se reproduzem.

  3. Não foi apresentada resposta.

  4. O recurso não foi admitido pelo relator do tribunal a quo com fundamento em verificação do obstáculo da dupla conforme entre as decisões das instâncias.

  5. Desta decisão reclamou a Recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do art. 643.º do Código de Processo Civil, a qual, por decisão da relatora deste Supremo Tribunal, veio a ser decida nos termos seguintes: «1.

    Ao abrigo do art. 643.º do Código de Processo Civil, Auto Manaiacar, S.A.

    veio apresentar reclamação do despacho de não admissão do recurso de revista com fundamento na verificação de dupla conforme entre as decisões das instâncias, alegando essencialmente que o recurso deve ser admitido porque o seu objecto não se encontra abrangido pela dupla conformidade de decisões. Alega, mais concretamente, que estão em causa as seguintes questões: «A) admissibilidade da revista quando se reage contra o não uso ou uso deficiente dos poderes do tribunal da relação sobre a matéria de facto B) admissibilidade da revista por erro na apreciação da prova por ofensa de Disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova C) da nulidade da douta sentença por violação do princípio do contraditório (decisão-surpresa)».

    [negrito nosso] Termina pedindo que a reclamação seja julgada procedente e, em consequência, seja admitido o recurso de revista interposto pela recorrente.

    Não houve resposta.

    Cumpre apreciar.

  6. Na presente reclamação está em causa saber se a dupla conforme entre as decisões das instâncias, impeditiva da admissibilidade do recurso de revista (cfr. art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), se encontra, no caso concreto, descaracterizada pelo facto de as questões suscitadas pela recorrente, ora reclamante, corresponderem à alegação da violação de disposições processuais no exercício dos poderes do Tribunal da Relação relativamente à reapreciação da decisão de facto, atendendo a que, de acordo com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, tais questões não se encontram abrangidas pela dupla conformidade, sendo o recurso de revista admissível para efeito de conhecimento das mesmas.

    Compulsado o teor das conclusões formuladas pela recorrente, confirma-se que as questões suscitadas foram correctamente elencadas em sede de reclamação, de acordo com a transcrição feita no ponto 1. da presente decisão. Verifica-se ainda que a primeira das questões enunciadas (reacção contra «o não uso ou uso deficiente dos poderes do tribunal da relação sobre a matéria de facto») corresponde às conclusões recursórias 1) a 13), nas quais a recorrente se insurge contra o acórdão recorrido na parte em que o tribunal a quo entendeu «que o recurso de apelação não cumpriu os ónus exigidos para a impugnação da decisão da matéria de facto previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil».

    Ora, das três questões enunciadas, essa primeira questão corresponde, efectivamente, à alegação da violação de disposição processual no exercício dos poderes do Tribunal da Relação relativamente à reapreciação da decisão de facto, descaracterizando a dupla conforme entre as decisões das instâncias.

    Porém, nem a invocação da violação de normas legais de direito probatório nem a invocação da violação pela 1ª instância do princípio do contraditório, sendo questões que não respeitam especificamente ao exercício dos poderes do Tribunal da Relação, permitem que se considere descaraterizada a dupla conforme.

    Assim sendo, a reclamação deve ser deferida, sendo o recurso de revista de admitir, circunscrito, porém, à apreciação da questão da correcção do acórdão recorrido ao interpretar e aplicar as exigências do art. 640.º do CPC.

  7. Pelo exposto, e de acordo com a referida orientação da jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, o recurso é admissível, circunscrito, porém, à apreciação da questão da correcção do acórdão recorrido ao interpretar e aplicar as exigências do art. 640.º do Código de Processo Civil.

    ».

  8. Do despacho da relatora acima transcrito, veio a Recorrente impugnar para a conferência, invocando que o recurso seja admitido para conhecimento de todas as questões suscitadas pela Recorrente.

    Por acórdão da conferência de 14.09.2023 a impugnação foi indeferida.

    II – Objecto do recurso a apreciar De acordo com o decidido anteriormente, a única questão a apreciar é a seguinte: • Da violação por parte do tribunal recorrido do regime adjetivo consagrado no art. 640.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, ao ter rejeitado o recurso da matéria de facto interposto pela R. apelante com fundamento em incumprimento dos ónus previstos em tais disposições.

    III – Fundamentação de facto 1 - A Ré Auto-Manaiacar vendeu a viatura Volvo, matrícula ....TQ.. a AA AA, pelo preço de € 35.000,00, venda esta que ocorreu a 19/05/2010.

    2 - Tal viatura destinava-se a ser exportada para ....

    3 - Na data da venda a Auto-Manaiacar entregou ao comprador AA os documentos do veículo.

    4 - Que os remeteu ao despachante para que a viatura fosse exportada para ....

    5 - Não tendo o veículo sido exportado para ..., o negócio de aquisição do mesmo passou a ser tributado com IVA.

    6 - Após a frustração da exportação do veículo adquirido, AA, que não tinha qualquer interesse no veículo, decidiu vender o mesmo, pedindo à Valart que intermediasse a venda.

    7 - Assim, ficou aquele veículo nas instalações da Autora Valart a aguardar que aparecesse alguém interessado.

    8- Em data não concretamente apurada, a...

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