Acórdão nº 730/20.0GBGDL.E2 de Tribunal da Relação de Évora, 10 de Outubro de 2023

Magistrado ResponsávelANA BACELAR
Data da Resolução10 de Outubro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora I.

RELATÓRIO No processo comum n.º 730/20.0GBGDL do Juízo Local Criminal ... da Comarca ..., o Ministério Público, fazendo uso do disposto no n.º 3 do artigo 16.º do Código de Processo Penal, acusou: AA, nascido a ... /... /1977, na República Federal ..., filho de BB e de CC, com residência no Centro Comunitário ..., Bairro ..., ... e ..., em ..., pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo artigo 171.º do Código Penal.

Não foi apresentada contestação escrita.

Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada em 23 de maio de 2022, foi decidido: «(…) julgo a acusação procedente, por provada e, em consequência: a) – Condeno o arguido AA como autor material de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão efetiva.

  1. Condeno ainda o arguido no pagamento de 2 (duas) UC de taxa de justiça, demais encargos com o processo.

    » Na sequência de recurso interposto pelo Arguido, este Tribunal da Relação, por acórdão proferido em 15 de dezembro de 2022, ordenou o reenvio do processo para novo julgamento, relativo à sua totalidade.

    Devolvido o processo à 1.ª Instância, foi elaborada nova sentença – proferida e depositada em 22 de junho de 2023 – onde se decidiu: «(…) 1. Julgar a acusação pública totalmente improcedente por não provada e absolver o arguido do crime de que vem acusado; 2. consignar que não são devidas custas pelo arguido, nos termos do artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal; (…)» Inconformado com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]: «1) Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, para ser julgado em processo comum perante tribunal singular, pela prática consumada, em autoria material, no dia 23 de dezembro de 2020, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido nos termos do artigo 171.º n.º 1 do Código Penal, contra DD, nascida em ... /... /2009.

    2) O presente recurso tem por objeto a sentença proferida pelo Tribunal a quo em 22 de junho de 2023, pela qual decidiu absolver o arguido da prática do crime que lhe foi imputado na acusação, por alegada atipicidade da sua conduta.

    3) Recorre-se da sentença recorrida por se entender que a decisão absolutória resulta de uma deficiente apreciação da prova e incorreta decisão da matéria de facto por parte do Tribunal a quo, decorrente de erro notório na apreciação da prova e violação do princípio da livre apreciação da prova, que se veio a traduzir numa errada subsunção jurídica da factualidade submetida a julgamento.

    4) Entendeu o Tribunal a quo que não se fez prova dos factos constantes da acusação, nomeadamente que o arguido tentou beijar a criança na boca (só não o conseguindo porque a criança desviava a cara), nem se fez prova do elemento subjetivo do tipo de crime em apreciação porque as declarações para memória futura da criança não lacónicas e não esclarecem suficientemente tais factos, que são essenciais.

    5) Sucede que reconhecendo a essencialidade desses factos para a decisão e entendendo que competiria à criança esclarecer tais factos, o Tribunal não determinou a sua audição em julgamento, em conformidade com o disposto no artigo no artigo 271.º n.º 8 do CPP, como lhe impunha o artigo 340.º n.º 1 e n.º 2 do CPP, em obediência aos princípios do inquisitório e da descoberta da descoberta da verdade material.

    6) Tendo omitido essa diligência de prova essencial, o Tribunal a quo descorou o artigo 340.º n.º 1 e n.º 2 do CPP, que interpretou e aplicou de forma errada, prejudicando não só boa decisão da causa, mas também a ofendida, vítima especialmente vulnerável, a quem negou justiça, violando o disposto nos artigos 124.º, 125.º, 340.º n.º 1 e n.º 2 do CPP, para além do princípio da descoberta da verdade material, do inquisitório e os artigos 20.º n.º 1, n.º 5 e 32.º n.º 7 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

    7) Assim decidindo, o Tribunal a quo proferiu uma sentença nula, nos termos do artigo 120.º n.º 1 e n.º 2 alínea d) do CPP, nulidade que se argui no presente recurso, que é o meio processual próprio para o efeito (cfr. 410.º n.º 3 do CPP), e que se pretende ver declarada pelo Tribunal ad quem, com as legais consequências, que se requer que seja declarada para todos os efeitos legais.

    8) A invocada nulidade tem como consequência a invalidade da sentença proferida, que deverá ser reconhecida e declarada pelo Tribunal ad quem, o qual deverá determinar a reabertura da audiência para realização da prova em falta (tomada de declarações à ofendida) e posterior prolação de nova sentença, tudo em harmonia com o disposto no artigo 122.º n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do CPP.

    9) Acresce que o Tribunal a quo não determinou a produção de prova que se afigurava essencial para a boa decisão da causa. Ora tratando-se de prova cuja produção era imprescindível (de acordo com o critério do próprio Tribunal), para a decisão da causa, e tendo ficado por esclarecer (para o Tribunal) se o arguido tentou ou não beijar a criança na boca, não podia a sentença deixar de conhecer desse facto.

    10) Esse facto é crucial, para além do mais, porque permitiria classificar indubitavelmente a conduta do arguido como sexual, aliás aos olhos do Tribunal, apenas esse facto o permitiria. Tendo optado não diligenciar no sentido da obtenção dessa prova acabou o Tribunal por não conhecer da verificação ou não de facto essencial para o objeto do processo e boa decisão da causa, mesmo tendo esse meio de prova à sua disposição.

    11) Para não ter dúvidas, quanto ao cariz sexual (ou não) da abordagem e atuação do arguido, o Tribunal teria de chamar a criança a depor, nos termos do artigo 271.º n.º 8 do Código de Processo Penal. Ao prescindir as declarações da criança em audiência o Tribunal preteriu a realização de diligência de prova essencial, o veio a ditar uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º n.º 2 alínea a) do CPP.

    12) A sentença absolutória deveu-se à preterição, pelo Tribunal a quo, da tomada de declarações à criança durante o julgamento, diligência que seria, no entender do próprio Tribunal, essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, para esclarecer se o arguido tentou ou não beijá-la na boca, facto sem o qual o Tribunal não pode (nem consegue) decidir adequadamente sobre o objeto do processo, dada a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (e não provada).

    13) Tal é causa de nulidade, nos termos do artigo 379.º n.º 1 alínea c) do CPP, nulidade que se invoca para todos os efeitos legais e que deverá ser declarada pelo Tribunal ad quem, com as legais consequências.

    14) No entendimento do Ministério Público os factos dados como provados, constantes do ponto 4 e os factos considerados não provados sob os pontos e a, c, d e e, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, foram incorretamente julgados pelo Tribunal a quo, atendendo ao teor das declarações para memória futura da criança e do depoimento da testemunha EE, que impunham decisão distinta daquela que consta na sentença recorrida.

    15) Aliás, o próprio arguido, ouvido na sessão de julgamento do dia 15 de junho de 2023, gravadas entre as 14H31 e 15H59, admite o contexto dos acontecimentos, e os factos, com exceção do beijo na boca, apenas negando, com a razoabilidade que lhe pode ser atribuída, o óbvio, i.e, a ausência de qualquer intenção em retirar proveito sexual ou outro qualquer do contacto com a criança.

    16) Segundo o arguido acariciou e beijou a criança na face. Acariciou-a nas coxas, braços e pernas e também na cabeça, mas fê-lo sem maldade.

    17) A testemunha EE confirmou que o arguido beijou a criança na face e que mexeu no corpo da sobrinha com as mãos, e que depois tentou beijá-la na boca, dirigindo a sua boca à da criança, factos que declarou por tê-los visto.

    18) A criança declarou que o arguido a abordou, que depois pôs as mãos nas suas coxas e que lhe fez festas, bem como que a tentou beijar na cara, mas não conseguiu por porque se estava a desviar. A criança não especificou que o arguido não a conseguiu beijar na boca porque não lhe foi colocada a questão, Em que parte da cara?. Caso fosse perguntado seguramente responderia como no inquérito, que o arguido a tentou beijar na cara … mas a testemunha EE foi perentória no que concerne ao facto de o arguido ter tentado beijar a criança na boca.

    19) Entendeu o Tribunal que as declarações da criança eram insuficientes para esclarecer os factos e não deu como provada a tentativa de beijo na boca, o que torna evidente que foi em virtude de não ter tomado as declarações da criança, impedindo que ela as prestasse que perante o Tribunal, que o Juiz a quo não considerou provada a factualidade acusatória.

    20) Contudo, naturalmente a prova desse facto, e do libelo acusatório no conjunto, exigia uma apreciação da matéria a apreciar, conjugando o depoimento da criança (prestado em declarações para memória futura, em 14 de outubro de 2021, que ficaram gravadas no sistema integrado em uso no Tribunal, com início pelas 12 horas e 54 minutos e termo pelas 12 horas e 32 minutos), com as declarações do arguido, o depoimento da tia da menor, EE, (prestadas em audiência de julgamento no dia 15 de junho de 2023 gravadas entre as 14H59 e 15H18) e ainda as da testemunha FF (da mesma data, cujo depoimento se encontra registado por gravação no sistema áudio entre as 15H19 e 15H30 minutos).

    21) Se o Tribunal a quo tivesse procedido a uma apreciação da prova em obediência aos imperativos legais previstos nos artigos 124.º, 125.º, 127.º 340.º n.º 1 e n.º 2 do CPP, teria julgado corretamente o ponto 4 da matéria provada e...

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