Acórdão nº 1472/22.8T8STR.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 13 de Setembro de 2023

Magistrado ResponsávelMARIA OLINDA GARCIA
Data da Resolução13 de Setembro de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Processo n.1472/22.8T8STR.E1.S1 Recorrente: Ministério Público, em representação de AA Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. O Ministério Público propôs ação de acompanhamento de maior em benefício de AA, nascida em ........1930, alegando que a Requerida apresentava antecedentes de demência vascular e hipertensão arterial, encontrando-se totalmente dependente, sem discurso lógico, desorientada, sem capacidade para andar, assinar ou tomar quaisquer decisões e que, em consequência desse estado de saúde, não conseguia gerir sozinha a sua pessoa e bens. E requereu que fosse decretada a medida de acompanhamento de representação geral, com substituição legal na prática de todos os atos de disposição patrimonial e consentimento para a prática de atos médicos, bem como a restrição dos direitos de testar, casar, perfilhar ou adotar. Para exercer as funções de Acompanhante indicou BB, filha da Requerida e como vogais do Conselho de Família CC e DD, também filhos da Beneficiária.

  1. Foi nomeada defensora oficiosa à Requerida; foi determinada a realização de perícia, cujo relatório se encontra junto aos autos; e procedeu-se à audição pessoal e direta da beneficiária.

    Decorridos os demais trâmites pertinentes, a primeira instância considerou a ação procedente, proferindo sentença com o seguinte dispositivo: «

    1. Determinar o acompanhamento de AA; b) Designar como acompanhante da Beneficiária BB, a quem competirá: - A representação geral da Beneficiária AA, incluindo a administração total dos seus bens; - Diligenciar para que a Beneficiária compareça às consultas médicas e hospitalares que sejam agendadas, tome a medicação prescrita e adequada à sua patologia e satisfaça as suas necessidades alimentares, de autocuidado, de vestuário e de higiene pessoal.

    2. Determinar a proibição do exercício dos direitos pessoais de casar, de constituir situações de união de facto, de procriar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar, de aceitar ou rejeitar liberalidades e de votar pela EE; d) Determinar a proibição de celebração de negócios da vida corrente pela EE; e) Determinar que as medidas de acompanhamento decretadas se tornaram convenientes a partir de 03/10/2019; f) Nomear CC, como primeira vogal e DD, como segundo vogal do Conselho de Família; g) Consignar que inexiste, em nome da Beneficiária, registo de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde; h) Determinar a revisão da presente decisão no prazo de 5 (cinco) anos, contados do trânsito em julgado da sentença.

    » 3. Discordando dessa decisão na parte em que estabeleceu a proibição do exercício do direito de votar [na alínea c) do dispositivo da sentença], o Ministério Público interpôs recurso de apelação. Todavia, o TRE, por acórdão de 16.03.2023, confirmou a decisão da primeira instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente divergente.

  2. O Ministério Público junto do TRE, não se conformando com o referido acórdão, interpôs o presente recurso, que qualificou como revista excecional, com base nas alíneas a) e b) do n.1 do art.672º do CPC. Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões: «Fundamentos da recorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Évora: 1.ª- O presente recurso é admissível e deve ser admitido como recurso de revista excecional nos termos do disposto nos artigos 671.º, n.º 1 e n.º 3, 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.

    1. - Tendo o A e ora recorrente (Ministério Público) legitimidade, interesse em agir e estando em tempo, não se conforma com o acórdão recorrido, que deliberou manter a sentença de 1.ª instância e que, quanto aos direitos pessoais da beneficiária do acompanhamento decretado, decidiu proibir, entre outros, o direito de votar pela beneficiária AA (dupla conforme).

    2. - O processo de acompanhamento de maiores é um processo especial, e não um processo de jurisdição voluntária, pelo que deve entender-se que a decisão recorrida não está incluída no quadro normativo que, com adaptações, respeita aos processos de jurisdição voluntária, pois a remissão que no artigo 891.º do Código de Processo Civil para ela se faz limita-se aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes, não incluindo, por isso, o elenco de direitos pessoais e a respetiva limitação que estejam especificamente previstos na lei e/ou que a sentença venha a proibir quanto ao seu exercício pelo beneficiário; não havendo assim obstáculo à recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. artigo 988.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).

    3. - A questão decidida pelas instâncias – proibição do direito de votar – respeita à capacidade eleitoral do beneficiário do acompanhamento, capacidade essa que tem normativos específicos e que devem e deviam ter sido respeitados pela decisão deste Tribunal da Relação de Évora, designadamente os que resultaram das alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto, que alterou a Lei Eleitoral do Presidente da República (artigo 3.º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3 de maio), a Lei Eleitoral para a Assembleia da República (artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio), o regime de Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais (artigo 3.º, alínea b), da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de agosto) e o regime jurídico do referendo local (artigo 36.º, alínea b) da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24 de agosto), diplomas que determinam, coincidentemente, que “apenas não podem votar os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos”, tendo sido revogada a norma que impedia o exercício de voto das pessoas declaradas interditas.

    4. - Acresce que o direito de sufrágio não está incluído na enumeração, ainda que exemplificativa, dos direitos pessoais cujo exercício podem ser limitados ou proibidos, segundo o artigo 147.º, n.º 1 e 2 do Código Civil, pois mais do que um direito pessoal, é um direito político e um dever cívico universal, conferido a todos os cidadãos maiores de 18 anos (cf. Artigos 48.º e 49.º da Constituição da República Portuguesa), e que é objeto de regulação legal específica, nos termos dos diplomas e normas atrás citados, pelo que está excluído do âmbito da decisão judicial “em contrário” (n.º 1 e n.º 2, do artigo 147.º, do Código Civil) e, portanto, a coberto de lei própria que não proíbe, mas apenas limita, o direito de sufrágio dos cidadão acompanhados ou não acompanhados que apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, estando por isso subtraído ao poder jurisdicional dizer o que quer que seja sobre esse direito, por haver lei que dispõe sobre o modo e âmbito da capacidade de voto.

    5. - Porque se consideram violadas normas de direito substantivo e critérios normativos atinentes à sua interpretação e aplicação, não há restrição ou condicionamento à apresentação da presente revista (cf. artigo 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

    6. - No que respeita aos requisitos da revista excecional, o sentido da decisão recorrida quanto à questão fundamental de Direito admite revista excecional, nos termos legais acima citados, pois a decisão sob recurso, além de ter desatendido a lei estrita a que estava vinculada, ofende e atinge radicalmente direitos políticos fundamentais de qualquer cidadão com diversidade funcional, pelo que decide e contende com questões de evidente interesse e relevância social e importa, de forma clara e necessária, para uma melhor aplicação do Direito, dada a sua relevância jurídica, segundo as alíneas a) e b), do n.º 1, do artigo 672.º. do Código de Processo Civil, como veremos de seguida.

    7. - No âmbito da ação especial epigrafada, em que figura como Autor o Ministério Público e Requerida AA, o Ministério Público requereu medida de acompanhamento que veio a ser decretada pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Local de ... – Juiz ..., e que no respetivo dispositivo julgou procedente a ação e decidiu, além do mais, proibir o exercício de direitos pessoais, entre eles o de votar, tendo o Ministério Público apelado dessa parte da sentença, que, nesta Relação, mereceu acórdão que manteve a decisão de 1.ª instância e negou provimento ao recurso, concluindo que as alterações às leis eleitorais consequentes à revogação do instituto da interdição não obstam a que a sentença de acompanhamento determine o impedimento do exercício do direito de voto.

      Fundamentação do recurso: A questão fundamental de direito a apreciar. Razões: (i) A relevância jurídica da apreciação da questão para uma melhor aplicação do Direito (artigo 672.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).

    8. - A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (aprovada pela Resolução da AR, n.º 56/2009, publicada no DR, 1.ª série, n.º 146, de 30- 7-2009) estabelece no seu artigo 29.º a garantia de as pessoas com deficiência participarem na vida pública e política em condições de igualdade com as demais pessoas, designadamente que “… podem efetiva e plenamente participar na vida política e pública, em condições de igualdade com os demais, de forma direta ou através de representantes livremente escolhidos, incluindo o direito e oportunidade para as pessoas com deficiência votarem e serem eleitas”.

    9. - Ora, do Estado também fazem parte os tribunais, pelo que sobre eles também recai a obrigação de conferirem, na prática, a garantia que a Convenção consagra, ou seja, que não incluam ou proíbam o direito de voto no “pacote” da limitação dos direitos pessoais consubstanciado numa medida de representação geral, já que tal limitação, a ter que existir, não lhes compete, nos termos da lei, nem é permitida pela Convenção e, primacialmente, pela Constituição da República Portuguesa.

    10. - De facto, a...

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