Acórdão nº 22/22.0PBMLG.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 12 de Julho de 2023

Magistrado ResponsávelMARIA JOSÉ GUERRA
Data da Resolução12 de Julho de 2023
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

… Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra: I- Relatório 1.

Encerrado o inquérito, em 22.06.2022, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, entendendo que não existem indícios suficientes da prática pelo denunciado AA de qualquer ilícito penal.

* 2.

Inconformada veio a denunciante BB requerer a sua constituição como assistente e a abertura de instrução, pretendendo a pronúncia do denunciado AA pela prática de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º, nº1 do C. Penal, e pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nº1 f) do C. Penal.

* 3.

… foi proferida decisão instrutória de não pronúncia.

* 4.

Inconformada com tal decisão, dela veio interpôr recurso a assistente, pugnando nas conclusões do respectivo requerimento de interposição do recurso, da seguinte forma, que se transcreve: “… Da contradição insanável da fundamentação da decisão, bem como erro notório da apreciação da prova … IV.

Ora, está em causa o crime de violação de domicílio previsto e punido pelo artigo 190.º n.º1 do CP: “Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias”.

… VII.

Aliás, o próprio tribunal a quo indica que resulta suficientemente indiciado que o arguido mudou a fechadura do imóvel e impediu a assistente de aceder ao mesmo: “Analisando toda esta prova resulta suficientemente indiciado que entre a assistente e o sogro do arguido terá sido realizado um contrato de arrendamento, não reduzido a escrito e que à data dos factos existiam rendas em atraso, o que levou a que o arguido tivesse mudado a fechadura do imóvel e impedido que a assistente pudesse aceder ao mesmo.”; Para tal o arguido, o seu advogado, e um técnico, deslocaram-se ao local onde mudaram a fechadura”.

VIII.

Pelo que, é completamente antagónico, com os mesmos factos, que o tribunal a quo, de seguida, dê como insuficientemente indiciado que não tinha o arguido intenção de se introduzir na residência na assistente.

(vide ponto 1 da decisão instrutória “Não se encontra suficientemente indiciado.”) … Da Errónea Aplicação do Direito aos Factos XIII.

A decisão instrutória, também merece a nossa desaprovação, segundo uma nova ordem de razões: errónea aplicação do direito aos factos vertidos in casu.

XIV.

Mormente o seguinte segmento: “Na verdade, tal como referido no crime de violação de domicílio o elemento subjectivo é constituído pela vontade livre e consciente de praticar o ato com a intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego da pessoa ofendida.

Acresce ainda ser necessária a consciência da ilicitude.

Analisando a prova junta aos autos, nomeadamente documental, resulta claro que o arguido terá atuado sempre por indicação do seu advogado, sendo este que envia as mensagens e as cartas para a assistente.

Logo, é de presumir que o arguido estivesse convicto que a sua atuação era lícita.

(...) Tendo em conta a prova junta aos autos nunca poderíamos concluir pela verificação do elemento subjetivo, inclusive que o arguido agiu com dolo e com consciência da ilicitude.

(...) ….” XV.

Em jeito de síntese a decisão instrutória refere que não se encontram preenchidos os elementos subjetivos do crime de violação do domicílio, bem como o arguido não agiu com dolo e consciência da sua ilicitude.

XVI.

Veio o arguido, justificar o seu comportamento de entrada forçada, e troca de fechadura, no domicílio da assistente, com a alegada falta de pagamento de rendas por parte desta última.

XVII.

Deste modo, e sob o falso pretexto, de legitimar a sua conduta, o arguido, consultou um Advogado, e afirma ter atuado sob indicação deste.

XVIII.

Ora, decorre da experiência comum, e de qualquer homem médio, que os ordenamentos jurídicos, máxime, a lei, não permitem a entrada forçada nas habitações de outrem, e muito menos, que se modifique o meio de acesso ao mesmo – fechadura – sem o seu consentimento.

XIX.

E o arguido, ao contrário do que pretende fazer crer, estava bem esclarecido disso.

XX.

Tanto que, o arguido, ao consultar, antes de atuar, o seu Ilustre Mandatário, demonstra que, detinha consciência que aquele comportamento seria censurável aos olhos da lei.

…” * 5.

Apenas o MºPº junto da primeira instância respondeu ao recurso, … * 6.

Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, … * 7.

Foi cumprido o disposto no Art. 417º, n.º2 do CP, tendo a assistente respondido ao parecer, reiterando o por si alegado em sede de recurso, … * 8. Colhidos os vistos legais, os autos foram apresentados à conferência.

* II- Fundamentação A) Delimitação do Objeto do Recurso … No caso vertente, atentas as conclusões apresentada pela recorrente, as questões a decidir são as seguintes: - se a decisão recorrida padece dos vícios decisórios da contradição insanável da fundamentação e do erro notório na apreciação da prova, previstos nas alíneas b) e c) do nº2 do art. 410º do CPP; e - se existem indícios da prática pelo arguido do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo art. 190º, nº1 do C. Penal.

* B) Da decisão recorrida Vejamos, então, o teor da decisão recorrida, que, na parte relevante para apreciação do recurso, se transcreve: “ II- Fundamentação da Decisão: … * Dos tipos legais em causa: Do crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, p. e p. pelo artigo 190.º n.º 2, do Código Penal.

De acordo com o disposto no citado artigo: … Do crime de furto: De acordo com o art.º 203º do CP: … Dos indícios: Iniciaram-se os presentes autos com a queixa da ora assistente, onde a mesma refere que no dia 3 ou 4 de fevereiro de 2022, mudaram-lhe a fechadura da porta de entrada da habitação onde reside, suspeitando que tal tenha sido feito pelo ora arguido, genro do senhorio.

Refere ainda que, em face de tal se encontra privada dos seus bens.

São juntos documentos, mais concretamente troca de mensagens entre arguido e assistente.

Assim, junta uma mensagem enviada pelo advogado do arguido, onde o mesmo refere que o cliente tomou a posse do imóvel, pelo facto de não ter dado qualquer resposta à sua interpelação.

Outros documentos foram juntos aos autos, nomeadamente a carta junta a fs. 61, enviada pelo advogado do ora arguido à assistente, onde o mesmo solicita a entrega das chaves do imóvel no prazo de 30 dias, sob pena de troca de fechaduras.

Como fundamento é alegado a falta de interesse na compra do imóvel.

A fls. 67 consta uma outra carta em que é solicitado à assistente que no prazo de 10 dias agende dia e hora para a retirada dos bens, sob pena de colocação dos mesmos no lixo.

A fls. 63 consta uma outra mensagem do ora mandatário do arguido, enviada à assistente onde refere que desde dezembro que a contacta, para desocupar o imóvel, pagar o montante em dívida e retirar os bens e que, em face da falta de resposta, a única alternativa foi a posse do imóvel, através da mudança de fechadura. Nessa mensagem é, ainda, solicitado à assistente a remoção dos bens.

A essa mensagem responde a assistente que apresentou queixa na policia e que não abdica nem dos bens nem do arrendamento.

Quando inquirida como testemunha a ora assistente manteve os factos da denuncia, esclarecendo ainda que nunca mais teve acesso à habitação e as suas coisas.

Foram inquiridas testemunhas que confirmaram que a assistente tinha arrendado o espaço em causa ao sogro do arguido, que a determinada altura foi mudada a fechadura da fração em causa e que, em face de tal, a assistente ficou privada da residência.

Resultou ainda dos depoimentos, o que foi confirmado pela assistente quando prestou declarações em sede de instrução, que à data dos factos existiam rendas em atraso.

Quando inquirido como testemunha o ora arguido referiu que a residência em causa nos autos é propriedade do seu sogro.

Referiu ainda que a mesma foi arrendada à assistente que, a certa altura, manifestou interesse em adquiri-la.

Contudo, a assistente deixou de pagar as rendas e de atender os telefonemas e nunca mais manifestou interesse na aquisição do imóvel.

Perante tal, deslocou-se com o advogado e um técnico ao local para trocar a fechadura e que nessa altura se apercebeu que o gás tinha sido cortado.

Também referiu que ao entrar na habitação verificou que ainda existiam pertences da assistente dentro da mesma, tendo sido enviada uma mensagem à mesma para que retirasse os retirasse.

Em sede de instrução foram tomadas declarações à assistente e inquiridas testemunhas que nada mais trouxeram aos autos do que aquilo que resultava de inquérito.

Analisando toda esta prova resulta suficientemente indiciado que entre a assistente e o sogro do arguido terá sido realizado um contrato de arrendamento, não reduzido a escrito e que à data dos factos existiam rendas em atraso, o que levou a que o arguido tivesse mudado a fechadura do imóvel e impedido que a assistente pudesse aceder ao mesmo.

Ora, e sem entrar aqui na questão cível, dúvidas parecem não existir que a providência adequada a adotar seria a ação de despejo.

Assim, será sempre de questionar a licitude da conduta adotada, nomeadamente em termos cíveis.

Contudo quer o crime de violação de domicílio quer o crime de furto só existem quando os elementos subjetivos do tipo se encontram verificados.

Ora, e com todo o respeito, na situação concreta, quer no crime de furto, quer no crime de violação de domicílio tais elementos não se encontram indiciados.

… Acresce ainda ser necessária a consciência da ilicitude.

Analisando a prova junta aos autos, nomeadamente documental, resulta claro que o arguido terá atuado sempre por indicação do seu advogado, sendo este que envia as mensagens e as cartas para a assistente.

Logo, é de presumir que o arguido estivesse convicto que a sua atuação era lícita.

… Na verdade, não...

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