Acórdão nº 1917/20.1T9LRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 12 de Julho de 2023

Magistrado ResponsávelROSA PINTO
Data da Resolução12 de Julho de 2023
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

A – Relatório 1.

… foi proferida decisão instrutória, a 10.2.2023, decidindo-se julgar verificada a nulidade da acusação pública, ….

  1. Inconformado com a decisão instrutória, veio o assistente, Município ..., interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões: “… 2.º) Na verdade, o artigo 308.º, n.º 2, do Código de Processo Penal estatui que ao despacho referido no número anterior (o despacho de pronúncia ou não pronúncia) é aplicável o disposto no artigo 283.º do mesmo Código, artigo relativo ao despacho de acusação.

    3.º) Por seu turno, o n.º 3, alínea b), desse artigo 283.º estatui que a acusação contém, sob pena de nulidade, a indicação, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

    4.º) Neste despacho de não pronúncia são tecidas considerações genéricas sobre o crime de peculato de uso, por que vêm os arguidos acusados, e sustenta-se que os factos por que os arguidos vêm acusado não integram a prática de tal crime.

    5.º) Mas não se toma posição clara sobre se a prática de tais factos está ou não suficientemente indiciada.

    … 8.º) Assim, deveria o despacho recorrido especificar os factos que considera, ou não, suficientemente indiciados (questão sobre a qual terá tal despacho força de caso julgado material), independentemente da questão (a analisar de seguida) de saber se eles configuram, ou não, o crime de peculato de uso por que vêm os arguidos acusados.

    … 10.º) A mera insuficiência de articulação dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (imposta pelo art.º 283º 3 b) do CPP), conduzindo à rejeição da acusação, implica a devolução dos autos ao MP para os fins que tiver por convenientes e não a extinção do procedimento criminal.” … 14.º) Isto é, vale para o vício previsto no art 311º nº 3 (als a), b) e c)), como para a nulidade sanável prevista no art. 283º do CPP, o princípio do aproveitamento dos atos imperfeitos expresso nos nºs 2 e 3 do art.º 122º do CPP, de acordo com o qual deve ordenar-se sempre que possível a repetição dos atos inválidos, … 15.º) O poder-dever de perseguir criminalmente os autores de crimes não pode ser posto em causa por questões meramente formais que não envolvam a ofensa de direitos fundamentais e garantias processuais dos arguidos, … 16.º) Os apontados vícios, que constam no douto despacho de não pronúncia, poderão ser suprimidos na douta sentença a proferir, não implicando qualquer alteração substancial.

    17.º) Os equipamentos utilizados pelos Arguidos estão descritos na acusação. Aliás, também resulta da acusação, o tempo despendido pelos Arguidos a trabalhar no horário que deveriam estar ao serviço do Município, para a empresa do Arguido AA. Todos os equipamentos e as horas de trabalho, são quantificáveis, através do recurso às regras de experiência normal.

    …”.

  2. Também o Ministério Púbico, …, veio interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões: “… 3º - Entendemos que, no caso de a declaração de nulidade da acusação ter por base a insuficiência da descrição dos factos que integram os elementos do crime imputado aos arguidos, estamos perante uma deficiência de ordem formal e, como tal, pode ser suprida pelo Ministério Público, no mesmo processo, formulando novo libelo acusatório. … 4º - Daqui decorre que nada obsta à reformulação da acusação, desde que o seu conteúdo material seja alterado com a inclusão dos factos pertinentes que conduziram à sua rejeição.

    … 6º - Este entendimento está em perfeito equilíbrio com o dever de exercício da ação penal orientada pelos princípios da legalidade, da certeza e da segurança jurídica na aplicação da lei penal e as garantias do processo penal que devem ser asseguradas aos arguidos, nos termos do disposto nos artigos 219.°, n.º 1, 29.°, n.º 5 e 32.°, todos da Constituição da República Portuguesa.

    7º - Sobre a problemática da violação do princípio ne bis in idem pronunciou-se o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 246/2017, DR II série, de 17-05-2017, admitindo a possibilidade de vir a ser deduzida validamente uma nova acusação, suprindo uma outra manifestamente infundada por insuficiente descrição de um elemento típico, não se mostrando violados nem este, nem outros princípios ou quaisquer normas constitucionais.

    8º - A declaração da nulidade da acusação, nos termos consignados (por não conter a narração dos factos), seguida da devolução dos autos ao Ministério Público, não configura um convite ao seu aperfeiçoamento, o que contenderia com o princípio do acusatório, sendo que não existe fundamento para invocar a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/2005.

    9º - Trazendo igualmente à colação a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 1/2015 sempre se adianta que tal supõe o julgamento e a apreciação do mérito da causa, o que, como já foi dito, não é o que sucede no caso em análise, em que o juiz não chega a proferir qualquer decisão sobre o mérito da causa.

    …”.

  3. O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo assistente, pugnando pela sua improcedência … 5.

    Veio igualmente o arguido AA responder aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente, pugnando pela sua improcedência, … 6.

    Também a arguida BB respondeu aos recursos interpostos pelo Ministério público e pelo assistente, pugnando pela sua improcedência, … 7. … o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da procedência parcial do recurso do assistente e da procedência do recurso do Ministério Público, caso seja mantida a nulidade da acusação pública.

    … * B – Fundamentação 1. … 2.

    No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelos recorrentes, as questões a decidir são as seguintes: Do recurso do assistente Município ...: - se o despacho recorrido é nulo, nos termos do disposto nos artigos 308º, nº 2, e 283º, nº 3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, por não especificar quais os factos considerados indiciados e não indiciados; - se a acusação descreve os factos integradores do crime de peculato de uso; - se os elementos em falta na acusação, apontados no despacho recorrido, podem ser suprimidos na sentença a proferir, por não implicarem qualquer alteração substancial; - se a mera insuficiência de articulação dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, conduzindo à rejeição da acusação, implica a devolução dos autos ao MP e não a extinção do procedimento criminal.

    Do recurso do MP - se, na sequência da declaração de nulidade da acusação, deve o processo ser devolvido ao Ministério Público para deduzir uma nova acusação, suprindo as omissões apontadas na decisão recorrida.

  4. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos a decisão recorrida, que apresenta o seguinte teor: “I.

    … * B\ DA NULIDADE DA ACUSAÇÃO Sustenta o arguido AA que a acusação pública é nula, por não descrever factualidade que suporte a imputação que lhe faz da prática de crime de peculato de uso. Não descreve em que consistiu, em concreto, a acção ilícita e não descreve, em concreto, quais as coisas indevidamente usadas.

    Pese embora esta nulidade apenas tenha sido arguida por AA, a procedência da arguição aproveitará necessariamente às co-arguida CC e BB, … A acusação tem o seguinte teor: « …».

    … a acusação (artigo 28º) conclui que os arguidos, sem fundamento e autorização, utilizarem equipamentos e recursos pertencentes à Câmara Municipal ..., que lhes eram acessíveis e lhes foram entregues em razão das suas funções enquanto funcionários camarários, cientes de que não os podiam utilizar em proveito próprio ou de terceiros e, ainda assim, usaram-nos em benefício da sociedade “T...”. A menção a “equipamentos e recursos” faz pouco sentido face ao tipo legal do crime imputado, sendo evidente que este não abrange o uso indevido de “recursos” e que só o fará relativamente a “equipamentos” se estes forem imóveis, veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável.

    Nos artigos 10º, 15º, 19º e 21º, a acusação faz referência ao uso pelos arguidos de computadores, impressoras e respectivos tinteiros, papel, triturador de papel, telefone, internet e demais equipamentos que lhes estavam entregues ou afectos. A internet não cabe no elenco das coisas usáveis no cometimento do crime de peculato de uso. Os “demais equipamentos” não são determináveis, sendo essa expressão indeterminada insusceptível de fundar acusação criminal. Não se descrevem minimamente, nem em quantidade, nem em características, quais os computadores, impressoras, tinteiros ou telefones usados pelos arguidos. Não é atribuído qualquer valor a nenhuma dessas coisas, sendo claro que só é punível peculato de uso de coisas móveis de valor apreciável. A falta de indicação de qualquer valor inviabiliza que se conclua terem as coisas usadas “valor apreciável”. Nem sequer se pode considerar que a tal conclusão se chega por regras de experiência normal. O “valor apreciável” é aquele que, não chegando a ser um valor elevado (€ 5100 – artigo 202º, al. a), do C. Penal), está bastante além do valor diminuto (€ 102 – artigo 202º, al. c), do C. Penal) - … Assim, o “abuso” de coisas de valor inferior a € 500 não estará seguramente abrangido pelo tipo legal de crime imputado aos arguidos. E nenhuma das coisas genericamente indicadas na acusação tem necessariamente valor superior a € 500. Bem pelo contrário.

    Assim, concorda-se com o arguente AA: a acusação não cumpre a exigência de descrever cabalmente os factos integradores dos requisitos típicos do crime que imputa aos arguidos. O que se encontra descrito na acusação é insuficiente para imputar aos arguidos a prática do crime de peculato de uso, ou de qualquer outro, não podendo assim fundamentar a aplicação aos mesmos de uma pena. … O que implica que a acusação é nula, à luz do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283º...

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