Acórdão nº 107/19.0GAOBR.P1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 29 de Junho de 2023

Magistrado ResponsávelLOPES DA MOTA
Data da Resolução29 de Junho de 2023
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam em conferência na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1.

AA, arguida, com a identificação dos autos, vem, nos termos do artigo 437.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.09.2022, alegando que nele se apreciou e decidiu uma questão de direito em oposição com o decidido no acórdão de 23.02.2021, do Tribunal da Relação de Évora, no processo n.º 145/18.0GCSSB, que indica como acórdão fundamento.

  1. Na tese da recorrente, existe uma “oposição de acórdãos” porque “O Venerando Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão que aqui serve de fundamento, decidiu pela irrelevância criminal da conduta da arguida que desferiu uma bofetada (leve), revogando a sentença recorrida e absolvendo-a do crime de ofensa à integridade física simples, enquanto o Venerando Tribunal da Relação do Porto, no caso dos presentes autos, decidiu pela relevância criminal da conduta da arguida que agarrou o queixo e abanou a cabeça e, consequentemente, pela manutenção da decisão de condenação prolatada em 1.ª Instância.

    ” 3.

    Apresenta motivação com conclusões do seguinte teor: «1 – No presente caso ocorre oposição de julgados, entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento, relativamente à questão fundamental de direito, devidamente identificada e que aqui se dá por inteiramente reproduzida.

    2 – Tal questão prende-se com a aplicação do princípio da insignificância no âmbito de um crime de ofensa à integridade física simples num contexto de discussão e exaltação, em que o contacto físico foi ligeiro ou de pequena intensidade (na fundamentação, o Acórdão recorrido apelida o ocorrido de “ligeiríssima contenda”) e do qual não resultaram consequências, nomeadamente necessidade de tratamento médico.

    3 – Sobre tal questão, no domínio da mesma legislação/doutrina deverá ser proferido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, o qual, salvo melhor opinião, deverá ser no sentido de se impor a absolvição dos arguidos por verificação da insignificância da ilicitude no crime de ofensa à integridade física sempre que nos encontremos num contexto de discussão e exaltação entre as partes envolvidas, em que o contacto físico foi ligeiro ou de pequena intensidade e do qual não resultaram consequências, nomeadamente necessidade de tratamento médico, independentemente de o ofendido ter ou não sentido dores (ou as mesmas não tiverem tido especial significado) (…)».

  2. Vêm juntas certidões do acórdão recorrido, com indicação da notificação aos sujeitos processuais com a data de 15.09.2022, e do acórdão fundamento, com indicação de que transitou em julgado a 09.04.2021.

  3. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 439.º, n.º 2, do CPP, o Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto, apresentou elaborada resposta defendendo a rejeição do recurso e concluindo nos seguintes termos: «1- De acordo, entre outros, com o Ac. do STJ de 02-10-2008 (proc. nº 08P2484; Relator: Exmº Conselheiro SIMAS SANTOS) “1 – O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, como é jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, exige a verificação de oposição relevante de acórdãos que impõe que: (i) – as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para mesma questão fundamental de direito; (ii) – que as decisões em oposição sejam expressas; (iii) – que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas”.

    2- Assim, importa indagar se no Acórdão fundamento (Ac. da R. Évora de 23.02.2021, proferido no processo nº 145/18.0GCSSB.E1 (publicado in www.dgsi.pt) e no Acórdão proferido nestes autos em 14.09.2022, ambos transitados em julgado, “foram proferidos julgados expressos, não implícitos, porém divergentes, em termos de direito, sobre uma base factual pontualmente idêntica, no domínio da mesma legislação, como se diz no Ac. do STJ de 10.02.2010 307/00.7JAFAR.S1-Al.

    3- A questão apreciada e decidida no Ac. fundamento, versou sobre uma conduta consubstanciada num toque, num contacto facial, qualificado como mero “enxota moscas”, que por não ter provocado dores nem exigido tratamento ou assistência médica, foi considerada destituída de dignidade intrínseca ao bem jurídico protegido e justificadora da intervenção do direito penal.

    4- Já o Acórdão recorrido apreciou facto histórico claramente diverso, quer na sua formação, desenvolvimento e execução, que nas suas consequências ( e não de um mero toque facial, exoticamente alcunhado de “enxota moscas”): o sujeito ativo do crime apertou o queixo e abanou a cabeça do sujeito passivo, que sofreu dores, tendo decidido que tal conduta integrava a previsão e punição do art. 143º, nº 1, do C. Penal.

    5- Assim, salvo melhor apreciação, entendemos que não se confirmam os requisitos necessários que fundamentam a interposição de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, designadamente que “as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas” e, por conseguinte, cremos não estarmos em presença de “soluções opostas".

    6- Nos termos sobriamente expostos, afigura-se-nos que o recurso deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal.» 6.

    Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 440.º do CPP.

    O Senhor Procurador-Geral-Adjunto, considera verificados os pressupostos de natureza formal, mas pronuncia-se igualmente pela rejeição do recurso, por não serem idênticas as situações de facto e os acórdãos não assumirem posições diversas em relação à mesma questão de direito, o que faz nos seguintes termos (transcrição parcial): «(…) 4.2.2. Pressupostos substanciais Estava em causa nos dois processos a prática pelas arguidas de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

    No acórdão recorrido a arguida, ora recorrente, foi condenada pelo referido crime.

    A condenação assentou, essencialmente, na seguinte realidade de facto provada: [transcrição – reprodução infra] (…) No acórdão fundamento a arguida, que fora condenada na 1.ª instância, veio a ser absolvida pelo Tribunal da Relação de Évora.

    A decisão esteou-se basicamente na seguinte factualidade provada e não provada: [transcrição – reprodução infra] (…) Como se pode verificar, os alicerces factuais dos dois acórdãos não são idênticos.

    As diferenças começam logo no circunstancialismo que precedeu as agressões.

    No acórdão recorrido foi a arguida que abordou a ofendida e que a agrediu após «troca de palavras» sem que tivesse ficado provada a existência de qualquer «discussão» ou estado de «exaltação», nomeadamente da parte da ofendida. No acórdão fundamento, ao invés, arguida e ofendida envolveram-se em intensa discussão, presenciada por terceiros, no decurso da qual trocaram insultos e ameaças.

    Mas, mais importante que isso, enquanto que no acórdão recorrido a arguida apertou o queixo e abanou a cabeça da ofendida, causando-lhe dores, no acórdão fundamento, que cingiu a sua análise à agressão que antecedeu o envolvimento físico mútuo das duas antagonistas (primeira parte do facto provado 9), a arguida desferiu uma chapada leve na face da ofendida e não se provou que esta tivesse sentido dor na região da cara atingida.

    Ou seja, a reprovabilidade dos comportamentos, ilustrada pela forma como os mesmos se iniciaram e, acima de tudo, pela intensidade e consequências dos atos perpetrados pelas arguidas, não é idêntica nas duas situações em confronto.

    Perante tais diferenças factuais naturalmente que as respostas jurídicas não podiam ser iguais.

    De resto, os acórdãos estão em perfeita sintonia quanto à aplicabilidade do princípio da insignificância ao crime de ofensa à integridade física.

    Com efeito, lê-se no acórdão recorrido: «Como refere Paula Ribeiro de Faria “O tipo legal do art. 143.º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados (…) Por ofensa no corpo entende-se todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”. Como realça esta ilustre Professora, “A ofensa ao corpo não poderá ser insignificante. Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta (neste sentido, de uma “clausula restritiva de inadequação social”, cf. Figueiredo Dias, Sumários (1975 153)” O Professor Figueiredo Dias entende igualmente que as lesões insignificantes estarão excluídas do tipo penal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor. Nas palavras do Conselheiro Maia Gonçalves, “As ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, para que atinjam dignidade penal sejam subsumíveis à previsão deste artigo, não podem ser insig-nificantes, precisamente porque sendo o enquadramento penal a última ratio, qualquer comportamento humano, para que seja subsumido a preceito incriminador, deve ser filtrado pela luz que dimana do...

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