Acórdão nº 1027/21.4T9ACB.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 21 de Junho de 2023

Magistrado ResponsávelCRISTINA BRANCO
Data da Resolução21 de Junho de 2023
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Relatora: Cristina Pego Branco 1.º Adjunta: Alexandra Guiné 2.º Adjunta: Ana Carolina Cardoso Acordam, em conferência, na 5.ª Secção – Criminal – do Tribunal da Relação de Coimbra I. Relatório 1. Nos autos com o n.º 1027/21...., findo o inquérito, que correu termos na Procuradoria da República da Comarca de Leiria, Departamento de Investigação e Ação Penal - Secção de ..., o Ministério Público deduziu contra o arguido … a acusação … imputando-lhe a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, al. b), do CP.

  1. Remetidos os autos à distribuição, pela Senhora Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal ..., foi proferido o despacho a que alude o art. 311.º do CPP, no qual decidiu rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d), do CPP.

  2. Não se conformando com tal decisão, interpôs o Ministério Público o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição): «1.

    … 2.

    Foi proferido a 06.10.2022 o despacho judicial do qual ora se interpõe recurso e que rejeitou a acusação proferida, por a considerar manifestamente infundada, uma vez que a conduta aí imputada ao arguido não consubstancia a prática de crime de desobediência, ou de qualquer outro, e como tal rejeita-se a mesma nos termos do art. 311º n.º 2 al. a) e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal.

  3. Considerou o Tribunal recorrido que na acusação deduzida não constam todos os elementos objectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, nomeadamente, os que se prendem com a legalidade da ordem transmitida ao arguido.

  4. Consta do despacho judicial recorrido, entre o mais, que Sucede que na acusação deduzida nada se diz que nos permita aferir da legalidade da ordem de apresentação da viatura. Desconhece-se, na verdade, o fundamento de tal ordem, qual o motivo pelo qual o arguido estaria obrigado a colocar tal viatura à disposição de AA, encarregado da venda.

  5. Mais se diz no despacho recorrido que: a acusação também é omissa quanto à relação do arguido com o processo ou o veiculo em causa 6.

    E ainda que: apesar de se referir, no artigo 3.º que o arguido “não procedeu, naquele prazo, nem posteriormente, à apresentação do veículo em causa”, nada se refere quanto ao prazo concedido ao arguido para colocar a viatura em causa à disposição. Ora, na falta dessa indicação, é sempre possível pressupor-se que o agente poderá a todo o momento desobrigar-se da imposição de “pôr à disposição” a viatura, pelo que o desacatamento da ordem nunca chega a verificar-se.

  6. Por fim, consta, ainda, do despacho a quo que:, a verdade é que na acusação, com excepção do dolo do agente, nada se diz acerca da disponibilidade dos bens pelo arguido. Aderimos integralmente à fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07.12.2021, proferido no processo n.º 670/19.6T9LRA.C1 (in dgsi.pt), “De facto, só desobedece quem, tendo na sua mão ou na sua disponibilidade os documentos intimados, os não entrega após a legítima ordem recebida. Já Monsieur de La Palisse (ou Palice, conforme os gostos) o diria.”.

  7. … 9.

    No primeiro parágrafo da acusação é afirmado que o arguido foi notificado, pessoalmente, pela GNR ..., para colocar à disposição do encarregado de venda AA, o veículo automóvel com matrícula ..-..-IQ.

  8. A menção à figura de um encarregado da venda permite, desde logo, apreender a pré-existência de um processo judicial (de resto, devidamente identificado na certidão indicada na prova documental identificada no libelo acusatório).

  9. Também da própria menção à notificação efectuada por militar da GNR é possível extrair a existência de um processo judicial, porquanto, não se vislumbra outro cenário no qual um elemento policial se desloque à residência de um cidadão para lhe transmitir que deverá apresentar determinado bem a um encarregado de venda.

  10. Também do mesmo parágrafo da acusação resulta, ainda que implicitamente, que o veículo aí identificado estava ou já teria estado na posse do arguido.

  11. Dos segundo e terceiro parágrafos da acusação consta que o militar da GNR advertiu o arguido que a não apresentação do veículo o faria incorrer na prática de um crime de desobediência e que o arguido, ainda assim, não deu cumprimento à ordem emanada.

  12. … 15.

    Tais situação e cenário - presentes no texto da acusação - são, salvo o devido respeito por opinião diversa, demonstrativas da legalidade substancial e formal da ordem transmitida ao arguido.

  13. … 17.

    A existência ou não de um prazo para apresentação do bem - cuja referência é feita de forma confusa na acusação, pois que se refere que o arguido não apresentou o objecto em questão em prazo que não é quantificado - não constitui facto integrativo dos elementos do tipo.

  14. Com efeito, não é a existência de um prazo que confere a legalidade à ordem emanada e, como tal, a não quantificação de tal prazo - ainda que, implicitamente, do texto da acusação se perceba que existia, efectivamente, um prazo para o efeito - não pode ser considerado, salvo o devido respeito, como fundamento de rejeição.

  15. … 20.

    … 21.

    Em suma, pese embora se reconheça que o texto da acusação pudesse ser mais claro e completo, cremos que a mesma descreve o núcleo irredutível do tipo legal de crime imputado ao arguido, constituído pelos seus elementos objectivos e subjectivos e que a factualidade gravitante de tal núcleo, por lhe ser acessória, poderá ser apurada em sede de julgamento, mediante aplicação do disposto no art. 358.º, do C. P. Penal.

  16. Conforme vem sendo entendimento maioritário da jurisprudência mais recente, a irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, conducente à rejeição da acusação nos termos do artigo 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal, tem de ser manifesta e absolutamente inequívoca.

  17. Salvo o devido respeito, cremos que não é esse o caso da acusação deduzida nos presentes autos, conforme supra explanamos, pelo que o despacho recorrido, ao rejeitar a acusação proferida, com a fundamentação acima transcrita, incorreu na violação dos arts. 348.º, n.º 1, al. b), do C. Penal e 311.º, n.º n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do CPP, devendo, assim, ser revogado e substituído por outro que receba o libelo acusatório, ordenando o prosseguimento dos autos nos termos previstos no art. 311.º-A, do C. P. Penal.

    ….

    » 4. O recurso foi admitido, por despacho de 24-11-2022 (Ref.

    Citius 102032805).

  18. O arguido não apresentou resposta ao recurso.

  19. Não foi proferido despacho de sustentação da decisão recorrida.

  20. Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu parecer (Ref.

    Citius 10645855), no qual sufraga o teor da motivação apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância e se pronuncia pela procedência do recurso.

  21. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.

  22. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

    * II. Fundamentação 1.

    Delimitação do objecto do recurso … In casu, a única questão que se suscita é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público é manifestamente infundada, por dela não constarem os factos necessários à integração dos elementos típicos do crime imputado, ou seja, se a conduta aí imputada ao arguido não consubstancia a prática de crime de desobediência, ou de qualquer outro, como se considerou no despacho recorrido como fundamento para a sua rejeição.

    * 2. Da decisão recorrida É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição): «… O Ministério Público imputa ao arguido BB, a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b) do código Penal.

    Dispõe o artigo 311.º do Código de Processo Penal que: “1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

    2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.

    3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se...

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