Acórdão nº 340/22.8PBCLD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 07 de Junho de 2023

Magistrado ResponsávelPEDRO LIMA
Data da Resolução07 de Junho de 2023
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório 1.

… o arguido AA, … foi absolvido do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), e 2, al. a), do Código Penal (CP), que na acusação lhe vinha imputado.

2.

Contra essa sentença interpõe recurso o Ministério Público (MP), sustentando ser a mesma nula. Das motivações de recurso formula o que diz serem conclusões, nos termos seguintes: « I – A questão subjacente ao presente recurso é a seguinte: Estamos perante crime de violência doméstica, em que a vítima foi cônjuge do arguido e prestou declarações para memória futura em inquérito.

Deve a vítima ser chamada a depor, em sede de audiência de julgamento, para declarar se pretende manter o seu depoimento ou recusá-lo, ao abrigo do art. 134.º, do Código de Processo Penal (CPP)? E caso se recuse, tal invalida a valoração das declarações para memória futura já prestadas, ao abrigo do art. 356.º, n.º 6, do CPP? II – A Mm.ª juiz do tribunal a quo decidiu no sentido afirmativo em ambas as questões, não valorando as declarações para memória futura prestadas pela vítima. Estribou o seu entendimento, no essencial, na argumentação constante do Ac. TRL de 15/09/2021.

III – Nos presentes autos, o tribunal decidiu absolver o arguido por não ter sido efetuada prova cabal dos factos pelos quais havia sido acusado.

IV – Tal decisão decorre do facto de não terem sido valoradas as declarações para memória futura que a vítima prestou em sede de inquérito.

V – No tribunal a quo, em sede de julgamento, a Mm.ª juiz decidiu chamar a ofendida a depor como testemunha e questioná-la se nos termos do art. 134.º, do CPP, pretenderia prestar declarações nesse momento. Uma vez que a vítima referiu não pretender prestar declarações, considerou o tribunal que, por tal motivo, não poderia valorar as declarações para memória futura já prestadas.

VI – Discordamos, por um lado, que a vítima, que já prestou declarações para memória futura sequer possa ser chamada, sem fundamento, a prestar declarações em julgamento.

VII – Não concordamos que tenha ou deva ser novamente questionada nos termos do art. 134.º, do CPP. E também se discorda que a recusa de prestar depoimento possa invalidar as declarações para memória futura já prestadas.

VIII – Com os art. 271.º, do CPP, e 24.º, da Lei 130/2015, de 04/09, pretende-se, por um lado, acautelar a prestação de depoimentos de testemunhas cruciais para a boa decisão da causa, … IX – Por outro lado, proteger vítimas mais sensíveis, … … XII – Acresce que, as declarações para memória futura oferecem as mesmas garantias de defesa do arguido e de análise e produção da prova. … XIII – Realça-se ainda que, nos termos do n.º 6, a testemunha é sempre questionada ao abrigo do artigo 134.º, do CPP, sobre se pretende prestar depoimento. Caso as declarações para memória futura sejam prestadas sem que o juiz de instrução criminal tenha feito a advertência a que se refere o artigo 134.º, então, nesse caso, justifica-se que a testemunha seja chamada a audiência de discussão e julgamento para suprir tal falta. Caso tenha sido efectuada, como impõe a lei, não se compreende a necessidade de repetir tal advertência.

XIV – Questionamos, então, qual seria o entendimento, segundo tal teoria, sobre como proceder caso a testemunha viesse a falecer, se ausentasse para morada desconhecida ou ficasse incapaz de prestar depoimento em razão de doença ou da idade? Ficam anuladas as declarações para memória futura já prestadas??? XV – E caso a testemunha, em sede de audiência de discussão e julgamento, seja persuadida pelo arguido ou pelo seu defensor a não prestar depoimento?? O tribunal deve então ignorar as declarações para memória futura e optar por seguir uma interpretação legalista e presa à letra da lei em detrimento da justiça e da boa decisão da causa?? XVI – Realça-se que foi, exactamente, o que aconteceu nos presentes autos. Após recusar a prestação de depoimento, no final da audiência de discussão e julgamento, a vítima declarou que havia sido aconselhada pela ilustre defensora do arguido a perdoá-lo, uma vez que este se encontra gravemente doente. A ofendida expôs tal situação por escrito em requerimento de 17/02/2023, que se encontra junto aos autos, com ref. 9486049.

… 3.

Respondeu o arguido, pugnando pela rejeição do recurso ou, não sendo o caso, por ser-lhe integralmente negado provimento, de toda a maneira com manutenção do decidido nos seus precisos termos. … 4.

Subidos os autos, a Sr.ª procuradora-geral adjunta emitiu parecer em que, no essencial acompanhando as razões do recorrente, que ainda assim desenvolve, e manifestando o entendimento de não haver vício da apresentação do recurso, por isso não cabendo a sua rejeição, conclui afinal pela respectiva procedência.

5.

Cumprido que foi o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada mais se acrescentou, … II – Fundamentação 1.

Delimitação do objeto do recurso 1.1.

… 1.2.

… pode sem mais apontar-se como única questão por ele suscitada a de saber se a sentença recorrida enferma de nulidade; em concreto se a não valoração, em audiência, das declarações para memória futura prestadas pela vítima em inquérito, sendo indevida, como o recorrente argumenta ser, se repercute em qualquer nulidade da sentença. Isto, claro está, sem prejuízo, como se disse, da eventualidade de verificação de alguma outra nulidade que, mesmo não vindo arguida, importasse conhecimento oficioso, nem, bem assim, de eventuais vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, que nela se detectassem.

1.3.

… 2.

A decisão recorrida A boa apreciação da causa, nos termos acima melhor enunciados, importa que se faça aqui presente, a despeito da extensão que isso imporá a esta peça, não apenas o essencial da decisão em matéria de facto (incluindo os factos provados, não provados e a motivação), como ainda a fundamentação de direito (por ter sido nesta última que o tribunal recorrido expõe as razões de não ter valorado as declarações para memória futura prestadas pela vítima), ainda que procurando de tudo isso cingir a transcrição ao que verdadeiramente possa tanger com o que no recurso está em causa. Assim delimitado, é o seguinte o teor respectivo: « (…) II – Fundamentação

  1. Factos provados (…) 1.

    O arguido e a vítima BB casaram civilmente no dia .../.../2003, … 16.

    A relação entre o arguido e a ofendida foi-se degradando, ficando restringida, desde há alguns anos, à partilha do espaço habitacional e à economia comum.

    17.

    De acordo com o referido pela ofendida e pela enteada do arguido, este revelou-se possessivo e ciumento, pretendendo controlar todos os aspetos da vida da ofendida, acusando-a de manter outros relacionamentos.

    18.

    Tal quadro, associado a essas características pessoais do arguido, bem como à sua fragilidade psicoemocional e falta de capacidade de resistência às frustrações, tornou a relação conflituosa e quezilenta, com discussões frequentes.

    19.

    Arguido e ofendida viriam a separar-se, por iniciativa desta, passando a residir em habitações distintas.

    20.

    A ofendida, contudo, manteve-se presente na vida do arguido, assegurando apoio na preparação de refeições e tratamento de roupas e demais atividades de índole doméstica.

    21.

    Viriam a reatar e a interromper por algumas vezes o relacionamento, registando-se alguns incidentes, com comportamentos desajustados por parte do arguido, em regra de caráter reativo face à opção da ofendida em não querer manter a relação matrimonial entre ambos.

    22.

    Os processos acima referenciados reportam-se a condutas delituosas de violência doméstica no contexto do termo do relacionamento, o qual nunca foi aceite e interiorizado pelo arguido.

    … B) Factos não provados Não se provou que: … 7.

    O arguido sabia que devia tratar sempre a vítima com respeito e dignidade, uma vez que a mesma é sua esposa, devendo abster-se das condutas como aquelas que assumiu.

    8.

    Não obstante estar ciente disso tudo o arguido agiu como acima descrito, o que fez com o objetivo conseguido de magoar a vítima física e psiquicamente e de a humilhar enquanto pessoa, de lhe causar medo, diminuí-la na sua pessoa e na sua liberdade de determinação no âmbito da relação de ambos enquanto casal, tendo orientado a sua ação para a concretização dessa vontade e aproveitando-se do temor que causava na mesma, conseguindo causar à vítima instabilidade emocional, como forma de sobrepor a sua vontade à dela e de a levar a agir de acordo com aquilo que ele queria.

    9.

    O arguido agiu sempre de forma livre deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por Lei penal.

  2. Motivação da matéria de facto … A audiência de julgamento teve lugar na ausência do arguido que, por razões de saúde devidamente comprovadas nos autos padece, presentemente, de elevadas dificuldades de locomoção, tendo requerido, neste contexto, que a audiência de julgamento decorresse na sua ausência, o que foi deferido.

    A ofendida, não obstante tivesse prestado declarações para memória futura perante do JIC em fase de inquérito e na data de 27/07/2022, ouvida em audiência de julgamento recusou-se a prestar quaisquer declarações, usando da prerrogativa legal que lhe assiste e que se encontra contida no art. 134.º, n.º 1, al. a), do CPP.

    Esclarecida sobre as consequências desta sua posição processual, a mesma referiu, de forma expressa, que não pretendia prestar quaisquer declarações em julgamento.

    A convicção quanto à relação conjugal mantida entre arguido e ofendida foi obtida pelo exame do teor da certidão do assento de nascimento do arguido, constante de fls. 25 e ss., da qual consta o averbamento do casamento civil com a ofendida na data acima assinalada.

    No que se refere aos factos constantes da acusação verifica-se, assim, que nenhuma prova acerca dos mesmos foi concretizada em audiência de julgamento.

    Em face da ausência do arguido que, como tal, não prestou quaisquer declarações e da decisão da ofendida em não prestar declarações em...

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