Acórdão nº 273/23 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Maio de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução19 de Maio de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 273/2023

Processo n.º 217/2023

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido B., foi interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC) — Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 4 de janeiro.

2. Através da Decisão Sumária n.º 158/2023, decidiu-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso, com a seguinte fundamentação:

«5. Tal como delineado pela recorrente no seu requerimento, e para além de diversas considerações sobre a bondade ou correção da decisão recorrida em si mesma considerada, o objeto do recurso tem como objeto as «normas dos art.º 8.º, 9.º, 351.º do CC, art.º 62.º, alínea b) do CPC e art.º 38.º, n.º 1 da LOSJ, interpretadas e aplicadas no sentido de se considerar lícita, para analisar e decidir a competência internacional dos tribunais portugueses, a utilização (i) de factos presumidos não alegados na petição inicial ou fora da causa de pedir e (ii) do critério do centro de interesses».

Assim, em primeiro lugar, o recurso visará a fiscalização da constitucionalidade da norma, extraída do disposto nos artigos 8.º, 9.º e 351.º do Código Civil (CC), da alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil (CPC) e do n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), segundo a qual é possível analisar e decidir a competência internacional dos tribunais portugueses pela utilização de factos presumidos, não alegados na petição inicial ou fora da causa de pedir para analisar e fundamentar a declaração de competência internacional; em segundo lugar, pretende a recorrente a fiscalização da constitucionalidade da norma, extraída do disposto nos artigos 8.º, 9.º e 351.º do CC, da alínea b) do artigo 62.º do CPC e do n.º 1 do artigo 38.º da LOSJ segundo a qual é possível analisar e decidir a competência internacional dos tribunais portugueses pela utilização do critério do centro de interesses.

Uma vez que a decisão que admitiu o recurso não vincula este Tribunal (n.º 3 do artigo 76.º da LTC), importa analisar os pressupostos de admissibilidade deste específico tipo de recurso de constitucionalidade e verificar se é possível conhecer do seu objeto, atenta a necessidade da sua verificação cumulativa.

6. No que respeita à primeira questão de constitucionalidade (a norma, imputada aos artigos 8.º, 9.º e 351.º do CC, à alínea b) do artigo 62.º do CPC e ao n.º 1 do artigo 38.º da LOSJ, segundo a qual é possível analisar e decidir a competência internacional dos tribunais portugueses pela utilização de factos presumidos, não alegados na petição inicial ou fora da causa de pedir para analisar e fundamentar a declaração de competência internacional), não pode este Tribunal tomar dela conhecimento, por não poder dar-se por verificada a sua efetiva aplicação como critério determinante do sentido da decisão recorrida (artigo 79.º-C da LTC).

Com efeito, o acórdão recorrido não assenta, sequer indiretamente, na norma cuja constitucionalidade é posta em crise. Pelo contrário: afasta-se expressamente a utilização de qualquer presunção para apreciação da competência dos tribunais portugueses (fls. 624v): «como já tivemos ocasião de referir no ponto anterior, a 2.ª instância apenas atendeu aos factos alegados pelo A. na sua petição inicial, analisando a relação material controvertida tal como resulta aí configurada, não tendo utilizado quaisquer presunções judiciais e apenas aplicando ao caso o conceito de "centro de interesses", como conclusivo da factualidade alegada. Não se vislumbra, assim, qualquer fundamento para as citadas inconstitucionalidades, sendo de reiterar o que antes se transcreveu do acórdão deste STJ de 13-10-2022(29]: «Não tendo a presente decisão recorrido à utilização d[e] qualquer raciocínio presuntivo factual para relevar factos não alegados pelo Autor, tendo antes a determinação da competência dos tribunais portugueses resultado da aplicação de um critério normativo (a localização do centro de interesses do lesado durante o período em que ele imputa a violação dos seus direitos ao nome e à imagem), não há que conhecer da questão de constitucionalidade colocada pelo Recorrente na resposta as alegações de recurso, uma vez que a interpretação normativa por ele arguida de inconstitucional não e seguida nesta decisão, não sendo sua ratio decidendi».

Na realidade, a discordância da recorrente é dirigida ao modo como o tribunal a quo aplicou o direito infraconstitucional e à concreta valoração dos factos invocados pelo Autor. Ora, tal extravasa a competência deste Tribunal, cabendo antes aos outros tribunais: por imperativo do artigo 280.º da Constituição, o Tribunal Constitucional aprecia somente normas ou interpretações normativas que hajam constituído do critério decisório da decisão recorrida, sem poder avaliar, por referência direta à Constituição, os termos da subsunção do caso concreto em certa norma.

Nessa medida, não tendo o acórdão recorrido feito aplicação, enquanto ratio decidendi, da norma segundo a qual «é possível analisar e decidir a competência internacional dos tribunais portugueses pela utilização de factos presumidos, não alegados na petição inicial ou fora da causa de pedir para analisar e fundamentar a declaração de competência internacional», não poderia nunca a questão de inconstitucionalidade ser conhecida, nos termos do disposto no artigo 79.º-C da LTC. O que se compreende, porquanto um eventual julgamento da sua inconstitucionalidade seria inapto a determinar a reforma da decisão recorrida (n.º 2 do artigo 80.º da LTC), já que se manteria intacto o verdadeiro fundamento normativo em que assenta.

7. Quanto à segunda questão de constitucionalidade (a “norma”, extraída do disposto nos artigos 8.º, 9.º e 351.º do CC, da alínea b) do artigo 62.º do CPC e do n.º 1 do artigo 38.º da LOSJ segundo a qual é possível analisar e decidir a competência internacional dos tribunais portugueses pela utilização do critério do centro de interesses), e ainda que pudesse atribuir-se ao objeto do recurso caráter normativo, não poderia nunca o recurso ser admitido, por ilegitimidade da recorrente, uma vez que não suscitou perante o tribunal a quo, em termos processualmente adequados, tal questão de constitucionalidade (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).

A razão de ser deste pressuposto de admissibilidade — que decorre do próprio n.º 2 do artigo 280.º da Constituição — é facilmente compreensível: dirigindo-se o recurso de constitucionalidade à reavaliação do pronunciamento contido numa anterior decisão — e não à apreciação ex novo do vício pretendido controverter no âmbito da fiscalização concreta —, a necessidade de a questão ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional da instância recorrida visa garantir a obtenção de uma decisão suscetível de ser impugnada perante o Tribunal Constitucional, assegurando que este somente seja chamado a reapreciar as questões de constitucionalidade ou ilegalidade ponderadas — ou suscetíveis de o terem sido — pelo tribunal a quo na decisão recorrida (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 130/2014).

Ora, percorrendo a argumentação apresentada nos artigos 22.º a 60.º, 183.º e 210.º a 252.º, bem como nas conclusões b), v), qqq), rrr) e www), da alegação de recurso — expressamente indicados pela recorrente —, verifica-se que não foi enunciada qualquer norma, contida nas disposições sindicadas, que a recorrente reputasse inconstitucional e cuja aplicação devesse ser recusada pelo tribunal a quo. Pelo contrário, nos artigos 22.º a 60.º das alegações, a recorrente sustenta a inaplicabilidade do direito da União Europeia; no artigo 183.º defende-se a inconstitucionalidade «do entendimento do acórdão sob escrutínio»; na conclusão b) sufraga-se que «a ré considera a decisão ilegal», com fundamento na violação da Constituição; na conclusão v), argumenta-se por uma certa interpretação do direito infraconstitucional, por referência ao artigo 9.º do Código Civil; nas conclusões rrr) e www) a afirmar a suscitação adequada da questão de constitucionalidade.

A alusão ao centro de interesses para fixação da competência internacional dos tribunais portugueses apenas se encontra na conclusão qqq) — onde se sustenta que «são inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e ao centro de interesses e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir, sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ» — e nos artigos 210.º a 253.º das alegações, onde se argumenta que a «manutenção da decisão sub iudice importará interpretação e aplicação manifestamente inconstitucional das normas contidas nos art.º 62.º, alínea b) do CPC, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ, no sentido de permitir o recurso a presunções judiciais e critério do centro de interesses, para decidir sobre competência internacional dos tribunais portugueses» (artigo 210.º) e que «a adoção dum denominado “critério de centro de interesses” para decidir sobre matéria de competência internacional contraria o princípio do estado direito democrático, o princípio do processo equitativo, o princípio da separação de poderes e o princípio do dever de obediência à lei» (artigo 220.º).

Tal não permite dar por observado o ónus de suscitação «durante o processo» e «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer»...

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